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Agora é que são elas

Após os 15 minutos de fama de Donald Trump, começa a parte mais complicada do acordo de cessar-fogo

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Primeiro passo. Os reféns israelenses e os prisioneiros palestinos foram recebidos como heróis. Netanyahu foi relegado a segundo plano por Trump – Imagem: Omar Al-Qattaa/AFP, Chip Somodevilla/AFP e Jack Guez/AFP
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O segundo dia do cessar-fogo na Faixa de Gaza mostrou o quanto o esforço diário das partes envolvidas, em especial das lideranças árabes e ocidentais, será fundamental para impedir que a proposta de Donald Trump não fique apenas no plano das boas intenções, como as anteriores. Na segunda-feira 13, o presidente dos Estados Unidos viveu seus 15 minutos de fama e glória. Saudado pela população israelense, elevado pela mídia ao panteão dos pacificadores, o republicano deixou o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, em segundo plano e ocupou os holofotes tanto em Tel-Aviv quanto no Egito, onde assinou o “acordo de paz” sem a presença de representantes dos dois lados do conflito. Trump voltou a Washington triunfante, mas, no dia seguinte, as forças que tentam sabotar o plano saíram das sombras. Diante da demora do Hamas em devolver o número combinado de corpos de reféns israe­lenses ainda em seu poder, Israel manteve parte do bloqueio à entrada de ajuda humanitária no enclave e acusou o grupo armado palestino de sabotar as negociações.

A primeira fase do plano correu, no entanto, a contento. Israel libertou 1.968 palestinos, entre os quais 250 prisioneiros políticos que cumpriam prisão perpétua, encarcerados sob a lei militar de uma ocupação ilegal, e 1.718 reféns capturados por Israel durante o genocídio. Ainda há 9.070 presos políticos palestinos. Naji al-Jaafrawi, irmão do jornalista Saleh al-Jaafrawi, assassinado por grupos supostamente colaboradores de Israel, foi libertado e descreveu a vida na cadeia israelense: “A prisão é horrível demais para ser descrita em palavras. Rezem pelos reféns. Algemados, vendados, com as pernas estendidas, espancados nas costas.”

O fim das operações israelenses e o recuo do exército para uma área correspondente a 53% do território, ante os 82% anteriormente controlados por meio de zonas militares e ordens de expulsão, não significaram o fim das mortes palestinas. O Ministério da Saúde de Gaza registrou, entre a segunda 13 e a terça 14, mais 44. Do total, 38 eram de corpos encontrados nos escombros de prédios destruídos. Esta é a primeira evidência de como os números do extermínio israelense, atualmente calculado em 67.913, tendem a aumentar quando as ruí­nas foram remexidas. No sábado 11, o canal de tevê Al Jazeera informou que 135 corpos haviam sido encontrados nos escombros removidos após o cessar-fogo.

Palco. No Egito, o presidente Trump posou de pacificador, ladeado por uma claque não absolutamente convencida – Imagem: Evan Vucci/AFP

Na terça 14, o jornalista palestino ­Motasem Dalloul reportou as seguintes violações israelenses: drones mataram cinco civis no bairro Al Shuja’yia, parte oeste da Cidade de Gaza, no norte do território, drones assassinaram um morador do bairro de Al Fakhari, leste de Khan ­Yunis, mais ao sul, e o exército bombardeou várias regiões no norte da Cidade de Gaza. Israel também violou a cláusula que definia a extensão da “entrada total de ajuda humanitária”, bloqueando parcialmente a passagem de Rafah, no sul, na fronteira com o Egito, para reduzir o reabastecimento de itens essenciais destinados a uma população faminta. O governo informou à ONU que permitiria a entrada de apenas 300 caminhões por dia. Tom Fletcher, subsecretário-geral para a Coordenação de Assuntos Humanitários e Ajuda de Emergência das Nações Unidas, afirmou que a organização estava preparada para um esforço massivo de envio de 500 a 600 caminhões diários.

A justificativa para bloquear itens essenciais à vida foi o suposto descumprimento por parte do Hamas na devolução dos corpos dos reféns mortos. Na segunda 13, os últimos 20 israelenses com vida foram libertados por meio da Cruz Vermelha. Na mesma noite, quatro caixões foram entregues às autoridades israelenses. Outros quatro foram devolvidos na noite seguinte. A estimativa é de que o grupo palestino ainda detenha 20 cadáveres.

Houve uma tentativa de conter a crise diante das intransigências israelenses. De acordo com o diário Haaretz, um diplomata estrangeiro envolvido nas conversas de cessar-fogo disse que “não há crise” no tema dos corpos. “Israel levou em consideração que haveria dificuldade em localizar alguns corpos sob os escombros ao assinar o acordo”, teria dito o diplomata. O site Al Araby informou que equipes do Egito operam em Gaza para localizar os restos dos reféns mortos. O problema, como relata Dalloul, é que as forças israelenses ameaçam retomar operações genocidas, mas “a razão pela qual os corpos não são encontrados é que Israel não permite a entrada de equipamentos pesados que possam remover escombros, abrir ruas e procurar”.

Lideranças do Hamas continuam a rejeitar a proposta de desarmamento

O poder de Tel-Aviv decidir se o acordo deve ou não continuar preocupa o Hamas­ desde o início das conversas. Segundo escreveu o jornalista Barak Ravid em seu blog na plataforma Axios, no contexto das reuniões de ratificação e ajuste do texto em Sharm el-Sheikh, houve contato direto entre a diplomacia de Trump e integrantes do grupo palestino. ­Steve ­Witkoff, enviado especial do Oriente ­Médio, e ­Jared Kushner, genro de Trump e arquiteto do plano, tiveram uma reunião com a equipe liderada por Khalil al-Hayya, sobrevivente do atentado israelense em ­Doha, e garantiram que o presidente não permitiria que Israel “retomasse a guerra”.

O problema para os palestinos não é apenas Israel, mas o próprio “autor e garantidor” do plano. A segunda fase prevê a implementação de um sistema de governança que exclui o Hamas e outros grupos locais, além de instituir um “Conselho de Paz” liderado por Trump. Esse corpo político controlaria “o fundo para o redesenvolvimento de Gaza”. Citado nominalmente, Tony Blair, ex-primeiro-ministro da Grã-Bretanha, seria uma das autoridades estrangeiras a compor o conselho. No domingo 12, antes de partir para Tel-Aviv e, depois, para o Egito, Trump afirmou, no entanto, reconsiderar a nomeação do britânico. Ele admitiu não estar seguro em indicar Blair para supervisionar a governança de Gaza. A resistência ao britânico surgiu devido ao seu papel na invasão do Iraque em 2003 e na participação na Coalizão de Autoridade Provisória, o governo de ocupação de Bagdá após a queda de Saddam Hussein, que lhe rendeu acusações de crimes de guerra em 2016, bloqueadas pela justiça em 2017. “Eu sempre gostei de Tony, mas quero descobrir se ele é uma escolha aceitável para todos”, afirmou o republicano à imprensa.

Ainda que os detalhes específicos não estejam definidos, Trump não abre mão de excluir os palestinos de sua própria governança e de negar a autonomia sobre sua própria resistência. No Egito, o presidente dos EUA condicionou a reconstrução do enclave à desmilitarização. De volta à Casa Branca, afirmou ter conversado com o Hamas e instado o grupo a se desarmar. “Eles irão se desarmar ou nós iremos desarmar eles.”

Ao DropSiteNews, facções palestinas negaram o aval a qualquer desarmamento. Na sexta-feira 10, Basem Naim, autoridade do Hamas, afirmou ao canal Sky News que o grupo poderia aceitar “modalidades” de um desarmamento temporário ou “controle de portfólio”, mas que isso não significaria retirar as armas da resistência. “Os palestinos apenas se desarmariam completamente se fosse criado um Estado palestino independente, momento em que as armas seriam incorporadas a um exército nacional”, declarou.

Incertezas. Palestinos voltam para casa, sem saber ao certo se o massacre de fato chegou ao fim. A reconstrução vai custar, por baixo, 70 milhões de dólares – Imagem: Bashar Taleb/AFP e AFP

A solução de dois Estados, de qualquer forma, não parece ser prioridade no plano de Trump. Na segunda-feira 13, o republicano organizou uma cerimônia com líderes de diversos países em Sharm ­el-Sheikh. O encontro captou o espírito da iniciativa. O presidente dos EUA assinou o acordo como representante de ­Israel, pois Netanyahu havia sido barrado por outros participantes. Abdel Fattah al-­Sissi, o presidente egípcio, assinou em nome do Hamas. Na segunda fileira dos convidados estava Mahmoud Abbas, o líder do Fatah e presidente da Autoridade Nacional Palestina, reduzido ao papel de espectador. A primeira versão do plano previa a participação da ANP nas decisões de ­Gaza apenas depois de uma reforma supervisionada pelo conselho. Para a Al-Haq, organização palestina observadora de direitos humanos e da lei internacional, esse é o principal problema do plano de Trump. “Recebemos bem qualquer cessar-fogo genuíno, mas também vemos com cautela qualquer coisa que não respeite o direito de autodeterminação palestino.”

Hanan Ashrawi, política palestina e ex-líder da OLP, criticou a cerimônia no Egito. “A festa de amor e de mútua admiração em sociedade em Sharm el-Sheikh­ ignorou os grandes elefantes na sala: a contínua ocupação e a anexação insidiosa israelense da Cisjordânia, o imperativo da liberdade e da autodeterminação palestinas, a responsabilização pelo genocídio, pois nenhum passe livre deve ser dado à criminalidade, e o fato de que a reconstrução e reparação deveria ser financiada por Israel, responsável pela morte e destruição de Gaza.”

Outros pagarão a conta. A reconstrução não será apenas estruturada de forma a eliminar a política palestina, mas uma oportunidade de grandes negócios. O Middle East Monitor revelou que empresas e empreiteiras egípcias buscam garantir um lugar ao sol, pois há um excesso de materiais de construção que o mercado doméstico egípcio não consegue absorver. Segundo os primeiros cálculos, provavelmente subestimados, a reconstrução vai custar 70 bilhões de dólares e levará décadas. •

Publicado na edição n° 1384 de CartaCapital, em 22 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Agora é que são elas’

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