Mundo

assine e leia

Abaixo a Quinta República

Ao contrário das demais democracias europeias, a França flerta com o autoritarismo

Abaixo a Quinta República
Abaixo a Quinta República
O Estado sou eu. Macron impôs uma reforma da previdência rejeitada por 70% dos franceses. A truculência cobrará seu preço em algum momento – Imagem: Jeff Pachoud/AFP e Presidência do Benin
Apoie Siga-nos no

No outono de 1958, logo após 82% dos eleitores apoiarem uma nova Constituição para o país possivelmente menos governável da Europa Ocidental, Charles de Gaulle voltou-se para seu confidente, Alain Peyrefitte, e observou, com evidente satisfação, que havia reconciliado monarquia e república com sucesso. Mas, enquanto a Quinta República da França se aproxima de seu 65º aniversário, no fim deste ano, talvez tenha havido poucos momentos em sua história em que ela se viu mais contestada – e a Constituição parece ser a maior culpada, ao elevar o presidente da nação quase à posição de monarca eleito.

“Abaixo a Quinta República” tem sido um dos lemas dos milhões de manifestantes que, em 13 ocasiões, saíram às ruas, às vezes violentamente, num protesto contínuo em todo o país que se tornou muito mais do que rejeitar a decisão de ­Emmanuel Macron de aumentar a idade da aposentadoria de 62 para 64 anos.

De maneira única na Europa, argumentam seus críticos, a Constituição da Quinta República da França concede poderes ao Executivo em detrimento do Legislativo e, na verdade, coloca o controle desse Executivo essencialmente nas mãos de um homem (até agora, sempre foi um homem), espécie de líder supremo. O presidente francês nomeia os ministros do governo e é o chefe das Forças Armadas. Dissolve o Parlamento. Promulga leis (ou pode vetá-las temporariamente) e nomeia certos integrantes do Conselho Constitucional, que determina se as novas leis são realmente legais. Em princípio, ele faz a maior parte disso em conjunto com o primeiro-ministro. Mas já que é o presidente quem nomeia o primeiro-ministro, embora seja um que possa comandar uma maioria parlamentar, as opiniões deste raramente são um obstáculo aos desejos do presidente.

O presidente concentra demasiados poderes e inibe a ação parlamentar

Concebida por De Gaulle e redigida por Michel Debré, um professor de Direito que se tornou um combatente da Resistência e seria o primeiro primeiro-ministro da Quinta República, a Constituição francesa contém ferramentas que permitem ao governo restringir radicalmente o debate parlamentar e impor legislação por meio da Assembleia Nacional sem um voto. Elas foram utilizadas por outros presidentes, muitas vezes: o artigo 49.3, em particular, que, em troca de um voto parlamentar de desconfiança no governo, permite ao Executivo contornar o Congresso se não tiver certeza de obter a maioria, foi usado cem vezes desde 1958.

O uso de todas essas ferramentas por Macron para aprovar uma reforma rejeitada por mais de 70% dos eleitores garantiu, no entanto, que o atual presidente, visto por muitos como arrogante e inacessível, também seja agora amplamente acusado de autocrático – e precipitou o que alguns comentaristas chamam de crise da democracia francesa. Em meio a um cenário político instável e fraturado, e a um debate cada vez mais histérico, os críticos da Quinta República, que incluem o agitador Jean-Luc Mélenchon e seu partido La France Insoumise (A França Insubmissa), dizem que o poder centralizado e solitário dos presidentes franceses apenas aprofunda as divisões e agrava a desconfiança popular em relação à democracia. A Quinta República, eles sugerem, concluiu seu curso.

Força bruta. A polícia reprime as manifestações, mas os franceses não parecem intimidados pela tropa de choque – Imagem: Loic Venance/AFP

“Os elementos autoritários da Quinta República foram reconhecidos desde o seu início”, diz Patrick ­Martin-Genier, autor de um livro intitulado ­Towards a Sixth Republic (Rumo a Uma Sexta ­República). Martin-Genier argumenta: a questão é tão significativa que a França não pode ser considerada uma democracia parlamentar comparável à Alemanha. “É um sistema vertical de poder que basicamente confisca a democracia parlamentar e permite que o presidente faça o que quiser. Com o tempo, isso se tornou mais aparente e menos aceitável, e não podemos continuar assim.”

Outros concordam. A “hiperpresidência” da Quinta República engendra “distanciamento, isolamento, concentração de poder, decisões tomadas isoladamente ou em pequeno círculo, falta de transparência e, em última instância, sem encontrar oposição, autoritarismo”, argumenta Raphaël Porteilla, cientista político da Universidade da Borgonha.

Estariam os franceses prontos para mudar o sistema político e inaugurar a Sexta República?

A França está a quatro anos de sua próxima eleição presidencial agendada, mas, com a popularidade de Macron em queda e a líder de extrema-direita Marine Le Pen a aproveitar ao máximo, muitos expressaram alarme com o que poderia acontecer se um verdadeiro autoritário se tornasse presidente da Quinta República.

A atual Constituição restringe deliberadamente o papel do Parlamento como contrapeso, observa Porteilla, não apenas via artigo 49.3, mas de artigos que permitem ao Executivo limitar o tempo de debate e forçar a votação de um projeto de lei, retendo apenas as emendas que aprovou. Talvez mais significativamente, mantém o povo “à margem” do processo político, exercendo sua suposta soberania apenas durante as eleições periódicas e sem outra capacidade constitucional de atuação: os referendos podem ser iniciados apenas pelo presidente, ou por 20% dos deputados apoiados por 10% dos eleitores, cerca de 4,8 milhões. “O público está confinado ao papel de espectador e, cada vez mais, de não eleitor”, diz. A participação no segundo turno da eleição presidencial de 2022, que devolveu Macron ao Eliseu, foi a mais baixa desde 1969, enquanto apenas 46% dos eleitores se deram ao trabalho de votar no segundo turno das eleições parlamentares daquele ano. “Diante de uma crise democrática que põe em xeque a própria legitimidade do atual regime, a questão não é se a França deve mudar sua Constituição, mas se deve mudar as Constituições completamente”, argumenta.

Então a França, como aconteceu em várias ocasiões desde 1789, logo será forçada por mais uma turbulência social e política, após o caótico levante popular dos coletes amarelos em 2018, a mudar fundamentalmente a forma como é governada? Existem boas razões para não o fazer. A Quinta República nasceu em meio à guerra na Argélia e a uma tentativa de golpe militar, em maio de 1958. O que era necessário acima de tudo eram estabilidade e eficiência legislativa. A Quarta República anterior, mais parlamentar, fundada em 1946, tivera duas dezenas de governos, com duração média de sete meses. Ao concluir que a França e a democracia parlamentar plena não eram companheiras naturais, De Gaulle, o herói de guerra do país e homme de providence, concebeu seu regime mais executivo (reforçando-o, quatro anos depois, com um referendo garantindo que dali em diante o presidente seria eleito diretamente).

Circunstâncias. De Gaulle buscava a estabilidade em um momento crucial da república – Imagem: Arquivo/AFP

De Gaulle imaginou, porém, que o presidente permaneceria muito acima da briga de realmente governar o país – e muitos daqueles que acham que a Constituição deveria ser alterada novamente (ela foi revisada 24 vezes desde 1958), em vez de rasgada, creem que o cerne do problema atual é que Macron tenta reformar o país contra a vontade da população, sem maioria parlamentar, usando poderes que podem ser constitucionais, mas, em pleno século XXI, não são mais considerados democráticos.

Muitos, como o professor de história David Bellamy, argumentam que, num momento de incerteza política, redigir e adotar uma Constituição totalmente nova seria um “exercício perigoso”. Colocar novamente o Parlamento no centro da elaboração das leis implicaria, dizem eles, aceitação de um consenso e um compromisso que não fazem parte da cultura política da França, ao custo da tomada de decisões eficiente.

Além disso, diz Bellamy, a Quinta República mostrou sua adaptabilidade. A França passou, elenca, por “descolonização, guerra, agitação civil, renúncia e morte de presidentes, divisão de poder entre presidentes e Parlamentos de diferentes convicções, pequenas e grandes maiorias, referendos vencidos e perdidos”.

Sob ela, a França moderna tomou forma, em paz e prosperidade. Algumas mudanças aqui e ali – revisão de artigos controversos, representação proporcional, democracia mais participativa – seriam suficientes, dizem muitos. Outro historiador, Marc Lazar, sugere: os franceses são bastante apegados à ideia do líder todo-poderoso, à moda de Bonaparte. “Há algo sobre o ‘monarca republicano’ que os franceses aprovam”, disse Lazar. “Ele atrai muitos de nós. É por isso que ainda comparecemos em grandes números às eleições presidenciais. A participação no ano passado pode ter sido baixa, mas ainda assim foi de 72%.”

Estariam os franceses prontos para mudar o sistema político e inaugurar a Sexta República?

Historicamente, a França mudou a Constituição apenas em tempos de guerra, revolução e crise existencial – o que as manifestações de massa deste ano não são, ao menos até agora. Tampouco há qualquer acordo sobre como seria uma Sexta República. Um sistema ao estilo dos Estados Unidos, no qual os poderes do Executivo e do Legislativo são equilibrados? Um regime de estilo europeu, com um chefe de Estado amplamente representativo? Ou, como gostaria Mélenchon, referendos rotineiros, dando poder à população?

Talvez a maior razão pela qual uma Sexta República pode não ser iminente é que, no atual estado de fratura da política francesa, não há maioria para ela entre os parlamentares, mesmo que tornasse o Parlamento mais forte. Como tantas vezes, a França clama por mudanças. Ela apenas não consegue concordar sobre quais mudanças realmente deseja. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1259 de CartaCapital, em 17 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Abaixo a Quinta República’

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo