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A União Europeia ignorou a Rússia por muito tempo – e agora exagera na reação

A Europa sente-se culpada por seus erros, cada vez mais evidentes, e aposta em uma perigosa supercompensação

Limites. Os líderes europeus entraram em frenética guerra de sanções. Blinken deixou claro que os EUA não estão dispostos a lutar pela Ucrânia - Imagem: Emmanuel Dunand/AFP e Freddie Everett/Departamento de Estado dos EUA
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Durante os mais de dez anos que passei trabalhando para grupos de pensadores de política externa na Europa e nos EUA, fui bastante duro com a China e a Rússia. Na época em que a maioria dos especialistas em política externa de ambos os lados do Atlântico acreditava que a interdependência econômica transformaria essas potências em “partes interessadas responsáveis” no sistema internacional, e talvez até as democratizasse, enxergava a necessidade de uma abordagem mais dura.

Fui especialmente crítico da Alemanha, que tinha ido ainda mais longe que o resto da Europa em sua crença em ­Wandel durch Handel, ou “mudança através do comércio”. Critiquei o papel de carona da Alemanha em termos de segurança, especialmente seu baixo nível de gastos com Defesa e capacidades militares inadequadas e sua dependência da Rússia para o gás e da China como mercado de exportação. Em suma, não sou um pacifista nem alguém equivocado sobre Estados autoritários.

No entanto, desde que a guerra na Ucrânia começou, de repente fui desmascarado. Enquanto todos assistimos às horríveis imagens da Ucrânia, cresceu a indignação com os crimes de guerra cometidos pelos militares russos. À medida que os apelos para que façamos mais para ajudar o povo ucraniano aumentaram, encontrei-me no lado pacifista do debate, defendendo a desescalada e as saídas, em vez de maior envolvimento com a Ucrânia e a mudança de regime na Rússia.

Aqui está o que penso sobre o que aconteceu. Desde a anexação russa da Crimeia e a invasão de Donbas em 2014, tentamos impedir Vladimir Putin de ir mais longe na Ucrânia ou em outros lugares da Europa Central e do Leste. Havia um componente econômico da estratégia, as sanções, e um componente militar: o aumento das forças da Otan na Polônia e nos países bálticos e o treinamento dos militares ucranianos, em que o Reino Unido teve um papel importante.

Estávamos, porém, meio tímidos. Do lado militar, os EUA deixaram bem claro que não defenderiam a Ucrânia como se fosse um aliado da Otan – afinal, há ­boas razões para que não o seja. Enquanto isso, do lado econômico, a Europa continuou a depender do gás russo, que foi deliberadamente excluído das sanções. Na verdade, a Alemanha dobrou a aposta com o gasoduto Nord Stream 2, que foi acordado um ano depois.

Há pouco mais de duas semanas, ­Putin denunciou o nosso blefe. Ele examinou o que estávamos ameaçando fazer se ele invadisse a Ucrânia e, aparentemente, decidiu que era um risco que estava disposto a correr. Claro, é possível que ele tivesse invadido mesmo se tivéssemos ido mais longe com a dissuasão. Se a Rússia está surpresa com o quão duros e unidos fomos em resposta à invasão, isso não é um sucesso, mas um fracasso. Significa que a dissuasão não funcionou porque não conseguimos convencer a Rússia de que seríamos tão duros e unidos – e esse deve ser o nosso ponto de partida para pensar no que fazer a seguir.

Estamos numa situação sem precedentes e extremamente difícil. Mas parece-me que temos de dar um giro. O objetivo é fazer o possível para evitar uma nova escalada (enquanto levamos a sério a possibilidade de que o próprio Putin possa escalar, por exemplo, com o uso de armas químicas ou mesmo nucleares) e acabar com a guerra. Em vez disso, especialistas na Europa e nos EUA estão pedindo todos os tipos de medidas econômicas, políticas e militares, cujas consequências mal começamos a avaliar e que têm o potencial de arrastar a Otan para uma guerra com a Rússia.

“Como em pouco tempo o Ocidente passou de sanções direcionadas à guerra financeira contra o espaço econômico pós-soviético, sem objetivos unificados nem condições claras para suspender as restrições, enquanto um tirano impetuoso com armas nucleares trava uma guerra de agressão, é bastante aterrorizante”, tuitou Nicholas Mulder, historiador da Universidade de Cornell e autor de The Economic Weapon (A Arma Econômica), uma história das sanções, quatro dias após o início da guerra.

Tiro no pé. Os russos podem viver sem o McDonald’s. A Europa está preparada para o desabastecimento de trigo e gás? – Imagem: iStockphoto

Desde então, também houve pedidos para aumentar o apoio militar à Ucrânia. No domingo 6, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse que a Polônia tinha “luz verde” para fornecer seus caças MiG-29 para a Ucrânia. Na terça-feira 8, a Polônia disse que os enviaria para a base aérea de Ramstein, na Alemanha, para serem reformados, o que os EUA rejeitaram. O preocupante era que todos, incluindo o secretário de Defesa do Reino Unido, Ben Wallace, pareciam insinuar que o fornecimento de jatos de combate à Ucrânia dependia de países individuais, e não uma decisão a ser tomada coletivamente pela Otan.

Observando essa luta frenética para fazer alguma coisa, é difícil evitar a sensação de que o que está acontecendo é uma supercompensação. Estamos todos nos sentindo culpados por nossos erros, que de repente se tornam evidentes: a persistente dependência da Alemanha do gás russo, o persistente fracasso do Reino Unido em lidar com a lavagem de dinheiro russa. Estamos rapidamente dando passos drásticos aos quais resistimos durante anos, mas sem uma noção clara do que pretendemos alcançar e numa situação diferente e muito mais perigosa do que antes da guerra.

Neste momento tenso, o maior perigo é a imprudência. Uma fonte disso é uma espécie de neoconservadorismo ressurgente na Grã-Bretanha e nos EUA. Mesmo antes do início da guerra, ambos encaravam cada vez mais a política internacional como uma luta global entre democracia e autoritarismo. Como os ucranianos resistiram com extraordinária bravura e habilidade, a inépcia dos militares russos foi exposta. E como eles recorreram a métodos ainda mais brutais contra civis, muitos especialistas agora sentem a possibilidade de, finalmente, remover Putin do poder. Para alguns no governo Biden, é uma vingança pela interferência russa nas eleições presidenciais de 2016.

Mais surpreendente é o perigo de imprudência por parte da União Europeia. Após uma década de crises, muitas das quais permanecem sem solução, a UE aspira a ser “geopolítica” – as autoridades falam sem parar sobre a necessidade de os europeus aprenderem a “linguagem do poder”. A crise da Ucrânia revelou mais uma vez as fraquezas da UE. Mas, desde que a guerra começou, ela tem sido hiperativa, impondo sanções ao Banco Central russo antes dos EUA e até fornecendo armas para a Ucrânia. Foi também Josep Borrell, o alto representante da UE para as Relações Exteriores, quem anunciou pela primeira vez o plano de enviar caças para a Ucrânia há duas semanas – uma ilustração de quão perigoso é o desespero da UE em ser “geopolítica”.

A inclusão da Ucrânia na União Europeia apenas iria lançar mais lenha na fogueira

Além de sanções e fornecimento de armas, muitos especialistas pedem que a UE acelere o processo de adesão da Ucrânia. Mas o Kremlin vê a Otan e a UE como partes do mesmo projeto liderado pelos EUA e deixou claro que Putin fará qualquer coisa para impedir que a Ucrânia se integre ainda mais a qualquer um deles. Afinal, o catalisador para a anexação russa da Crimeia em 2014 foi uma proposta de acordo de associação entre a UE e a Ucrânia. Novos passos para integrar a Ucrânia podem provocar uma nova reação russa, possibilidade que parecemos não querer discutir, porque acreditamos que a Ucrânia deve ser capaz de escolher seu próprio destino.

Além do risco de escalada, há algo mais preocupante na aceitação da Ucrânia pela UE. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que encarna a ideia de uma UE “geopolítica”, disse recentemente que a Ucrânia era “um de nós”. A afirmação era indicativa de uma tendência no Ocidente de enquadrar esse conflito em termos civilizacionais. Inúmeros repórteres e comentaristas expressaram o choque de que um conflito tão brutal pudesse ter acontecido na Europa “civilizada”, em oposição ao distante mundo não civilizado. Em particular, muitos parecem sentir simpatia pelos ucranianos porque eles “se parecem conosco”. Poucos dias após o início da guerra, uma autoridade ucraniana chegou a dizer à BBC que o que tornava a situação tão emocionante era que “europeus de olhos azuis e cabelos louros” estavam sendo mortos.

A abordagem generosa da UE aos refugiados da Ucrânia, liderada pela Polônia, que na crise dos refugiados de 2015 foi um dos países europeus mais veementemente contrários à aceitação de requerentes de asilo da Síria e do Afeganistão, também parece ter sido influenciada por um sentimento de solidariedade étnica.

A forma civilizacional como esse conflito foi enquadrado pode ajudar a explicar por que tantos fora do Ocidente não veem esta guerra como a sua luta – por exemplo, a Índia, que se absteve na votação no Conselho de Segurança da ONU para condenar a invasão russa, duas semanas atrás. Lá e em outros lugares além do Ocidente, muitas pessoas olham para a guerra na Ucrânia de forma parecida com a maneira como o historiador e ativista pelos direitos civis William Edward B. Du Bois reagiu à eclosão da Primeira Guerra Mundial. A guerra é horrível, escreveu ele, mas só se tornou horrível agora que os brancos estão sendo mortos? •


*Hans Kundnani é diretor do Programa Europa na Chatham House e autor de  The Paradox of German Power.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1200 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Perigosa histeria”

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