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A um ano da Copa, Anistia Internacional acusa Catar de explorar trabalhadores migrantes

A ‘kafala’ é uma das queixas recorrentes abordadas por organizações de direitos humanos em Doha desde 2010

Catar será sede da Copa do Mundo de 2022. Foto: Reprodução/Russia Today
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O assunto é antigo e uma pedra no sapato do próximo país organizador da Copa do Mundo. A “kafala” é um sistema de apadrinhamento com o qual se controla as funções e mesmo a vida de qualquer trabalhador estrangeiro no Catar. Trata-se de uma exigência mais ou menos inspirada na lei muçulmana – a Sharia – que obriga o trabalhador expatriado a depender de uma espécie de “patrocinador”. A “kafala” é uma das queixas recorrentes abordadas por organizações de direitos humanos em Doha desde 2010.

Nesta terça-feira 16, a Anistia Internacional divulgou um documento denunciando que nada mudou nas práticas abusivas de Doha com os trabalhadores estrangeiros. No Catar, há 1,2 milhão de trabalhadores imigrantes para uma população de 1,9 milhão de pessoas. A maioria deles trabalha em enormes canteiros de obras no emirado, especialmente os destinados ao Mundial de futebol, o que torna o problema da “kafala” especialmente importante neste pequeno e riquíssimo emirado do Golfo.

O sistema, que em muitos casos se assemelha à uma espécie de “escravidão pós-moderna”, onde o trabalhador não possui direitos, contamina as condições de trabalho especialmente em grandes canteiros de obras, como os de estádios em construção. Com a “kafala”, quase um milhão de trabalhadores da Ásia (Paquistão, Índia, Filipinas, Nepal e Indonésia) se encontram sujeitos aos caprichos de seus empregadores, mas enfrentam condições difíceis que levam a acidentes.

Desde 2013, mais de dois mil acidentes graves foram registrados por organizações não governamentais (ONGs), incluindo a Building and Woodworkers International (BWI). Por sua vez, a Human Rights Watch denuncia a falta de transparência das autoridades no registro das vítimas. Nesta terça-feira 16, a Anistia Internacional denunciou que, faltando apenas um ano para a Copa do Mundo da FIFA de 2022, o Catar ainda não cumpriu sua promessa de abolir a “kafala” e fortalecer a proteção para os trabalhadores migrantes.

Em um documento intitulado Reality Check 2021, a organização internacional de Direitos Humanos analisa o progresso feito pelo Catar na reforma de seu sistema de emprego. O texto conclui que o progresso na sede da Copa se estagnou e que antigas práticas abusivas ressurgiram, revivendo os piores aspectos do sistema conhecido como “kafala” e minando algumas das reformas recentes. A Anistia assinala que o cotidiano de muitos trabalhadores migrantes no país continua difícil, apesar das mudanças na lei desde 2017 e apela às autoridades do Catar para que ajam com urgência para acelerar o processo de reforma deste sistema tribal de apadrinhamento.

Segundo Mark Dummett, Diretor do Programa de Questões Globais da Anistia Internacional, “depois da Copa, o futuro dos trabalhadores que permanecem no Catar será ainda mais incerto”.

Mudanças apenas no papel

Antes de agosto de 2020, o emirado havia aprovado duas leis com o objetivo de acabar com as restrições que impediam os trabalhadores migrantes de deixar o país e mudar de emprego sem a permissão do empregador. Se aplicadas de maneira adequada, essas leis poderiam derrubar a “kafala”, que continuava a vincular as decisões dos trabalhadores a seu empregador no país.

No entanto, segundo a Anistia Internacional, diversos trabalhadores afirmam que ainda enfrentam grandes obstáculos ao tentarem mudar de emprego, bem como reações negativas de chefes insatisfeitos, que praticamente impossibilitam qualquer decisão individual dos trabalhadores no desenvolvimento de suas carreiras. “Vimos mudanças no papel, mas não concretamente”, disse um deles. “A situação continua terrível”, desabafou.

Entrevistada pela Anistia, Aisha, que trabalha na indústria hoteleira, descreveu ter sido ameaçada por seu chefe quando se recusou a assinar um novo contrato com a empresa e pediu para mudar de empregador. Sua hierarquia afirmou que ela teria que pagar 6.000 riais do Catar (cerca de US$ 1.650) – mais de cinco vezes o seu salário mensal – ou seria mandada para casa. Embora a mudança na lei alegada pelo Catar devesse ter permitido que Aisha mudasse de emprego livremente, a reclamação dela ao Ministério de Desenvolvimento Administrativo, Trabalho e Assuntos Sociais foi  formalmente indeferida, segundo o documento divulgado pela organização.

Outros abusos deste sistema, que continua em voga no país-sede da Copa do Mundo de 2022, incluem o não pagamento de salários e a recusa em conceder alguns benefícios, dificultando o abandono do emprego. Os migrantes continuam dependendo de seus empregadores para entrar e permanecer no Catar, levando a acusações de “fuga” e “cancelamento de autorizações de residência”, táticas que empregadores abusivos usam para controlar sua força de trabalho.

Atraso de salários como “tática” de controle dos empregadores

Como parte de sua análise, a Anistia Internacional também constatou que o atraso e o não pagamento de salários, bem como de outros benefícios contratuais, continuam a ser uma das formas mais comuns de violações dos direitos laborais sofridas pelos trabalhadores. No entanto, o acesso à justiça continua muito limitado no país e os trabalhadores ainda são proibidos de se organizar em sidicatos para lutar coletivamente por seus direitos.

Em agosto de 2021, a organização já havia denunciado o fracasso das autoridades do Catar em investigar as mortes de vários milhares de trabalhadores migrantes, depois de ter sido estabelecida uma ligação entre a sua morte prematura e as suas perigosas condições de trabalho. Embora novas proteções trabalhistas tenham sido introduzidas a favor dos trabalhadores no Catar, vários riscos importantes permanecem em prática, como a ausência de um período de descanso obrigatório em relação ao tipo de trabalho executado – e as autoridades pouco fizeram para investigar a escala inexplicável das mortes.

“O Catar é um dos países mais ricos do mundo, mas sua economia depende diretamente dos dois milhões de trabalhadores migrantes que vivem no país. Cada uma dessas pessoas tem o direito de obter justiça e reparação em caso de abuso”, concluiu Mark Dummett, da Anistia Internacional, que também apela à FIFA, que organiza a Copa do Mundo, para assumir as suas responsabilidades “identificando, prevenindo, limitando e atenuando os riscos para os direitos humanos associados a este campeonato”.

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