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O “Centrão” mantém a maioria do Parlamento, apesar do avanço da extrema-direita continente afora

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Abalos. O francês Macron e o alemão Scholz foram os grandes derrotados, em uma eleição com viés nacional – Imagem: Markus Schreiber/AFP, Ludovic Marin/AFP e Jaime Reina/AFP
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Os resultados eleitorais nas duas maiores economias e populações da União Europeia amplificaram a sensação de catástrofe, mas o assalto da extrema-direita ao poder em Bruxelas ainda é um projeto em construção. Na França, a vitória inconteste da Rassemblement National, legenda de Marine Le Pen, com o dobro de votos dos liberais, levou o presidente ­Emmanuel Macron a uma jogada arriscada, a antecipação das eleições parlamentares para 30 de junho, cerca de um mês antes do maior evento esportivo do ano, a Olimpíada de Paris. Na Alemanha, o SPD, de Olaf Scholz, amargou o terceiro lugar, 2 pontos porcentuais atrás da AfD e seus 15,9%, desempenho impressionante para um partido acusado de receber financiamento de Vladimir Putin e forçado a afastar, duas semanas antes da votação, o principal candidato da chapa após declarações em um tom nazista levemente acima do admitido pelos aliados de outros países. Em primeiro ficou a CDU, de centro-direita, agremiação da ex-chanceler Angela Merkel e da atual presidente da Comissão Europeia e candidata à reeleição, Ursula von der Leyen.

Em apenas cinco dos 27 Estados da UE a extrema-direita não elegeu deputados. Todos periféricos ou minúsculos: Luxemburgo, Lituânia, Malta, Eslovênia e Irlanda. Apesar do alastramento das ideias fascistoides pela região, o avanço extremista foi, no entanto, relativo. Os Reformistas e Conservadores Europeus (ECR, na sigla em inglês), “família” política da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, conquistou quatro cadeiras a mais que em 2019. O Identidade & Democracia (não se perca pelo nome), de Le Pen, terá nove ­deputados a mais. Os independentes, grupo amorfo e divergente no qual se misturam, ou nem tanto, parlamentares de direita e esquerda, ganhou 37 assentos em comparação à eleição anterior, em parte pela inclusão provisória da AfD, expulsa do ID de Le Pen por conta dos escândalos de Maximillian Krah, o cabeça de chapa que minimizou os crimes das SS nazistas e viu um assessor envolvido em um esquema de financiamento de uma rede pró-Rússia. Não está claro se a AfD poderá – ou desejará – retornar ao ninho de Le Pen após o afastamento de Krah. Ou se dará início a uma terceira corrente radical. Detalhe: ideologicamente parecidos, o ECR e o ID cultivam ambições e estilos distintos.

A fragmentação parlamentar deu-se à custa do enfraquecimento de liberais e verdes. Os socialistas ficaram na mesma em relação a 2019 (um assento a menos), enquanto o PPE, de centro-direita, avançou dez posições. Apesar de a contagem dos votos em todos os países não ter sido concluída até o fechamento desta edição, o bloco centrista historicamente dominante no Parlamento – centro-direita, centro-esquerda e liberais – somará 403 das 720 cadeiras, suficiente para indicar os principais cargos, liderar as comissões importantes e manter mais ou menos intactas as políticas da União Europeia.

Fonte: Parlamento Europeu

Na noite do domingo 9, Von der Leyen resumiu o novo quadro: “O centro está a se aguentar. Mas também é verdade que os extremos da esquerda e da direita ganharam apoio e por isso o resultado traz grande responsabilidade aos partidos de centro”. No caso da comissária alemã, um novo dia sempre propicia uma nova oportunidade para quem navega ao sabor dos ventos. Até as vésperas das eleições, amparada nas projeções, imprecisas, de um crescimento mais acentuado da extrema-direita, Von der Leyen não demonstrava pudor em ultrapassar as “linhas vermelhas” ou romper “os cordões sanitários” na campanha pela reeleição. Manteve prudente distância do ID, abrigo dos adversários da AfD, mas arrastou asas em público para a ECR de Meloni. Tentou disfarçar a volúpia e a ansiedade por meio da “imposição” de dois compromissos genéricos, o apoio à Ucrânia e a preservação dos direitos ­individuais dos cidadãos europeus. Uma maneira de chafurdar na lama sem sair do salto. Desta vez, os eleitores livraram a presidente do Conselho Europeu da tentação. Os diques racharam, mas não foram rompidos. “Estou aqui em Berlim, apoiado por líderes socialistas e social-democratas de toda a Europa, para dizer mais uma vez: não há cooperação com a extrema-direita”, afirmou no sábado 8 Nicolas Schmit, um dos expoentes da S&D, ao rea­firmar as fronteiras do acordo centrista de governabilidade.

Com Bruxelas a garantir uma certa “normalidade”, as atenções nas próximas semanas estarão concentradas na França. Há quem aponte coragem, há quem denuncie uma precipitação de Macron na dissolução da Assembleia e na antecipação das legislativas. Caso os resultados das eleições europeias se repitam, o país testará, por longos e atribulados três anos, uma complexa coabitação no poder entre o ­atual presidente e Jordan Bardella, pupilo de Le Pen que encabeçava a lista de candidatos ao Parlamento Europeu pelo Rassemblement National e virou, automaticamente, o favorito ao posto de primeiro-ministro. O semipresidencialismo francês, modelo que Arthur Lira e alguns ministros do Supremo Tribunal Federal gostariam de replicar no Brasil, enfrentaria assim seu maior teste. Ainda no domingo 9, ante o desastre, Macron apelou aos eleitores: “A ascensão dos nacionalistas e demagogos é uma ameaça não só para a nossa nação, mas para a Europa. A extrema-direita é, simultaneamente, o empobrecimento do povo e a queda do nosso país. Por isso, no fim do dia, não posso fingir que nada aconteceu”. A esquerda, dispersa e mera coadjuvante nos últimos anos, promete uma inédita aliança eleitoral.

Na Alemanha, Scholz optou pelo inverso, fingir que nada aconteceu. Embora os social-democratas tenham amargado um vexaminoso terceiro lugar nas europeias, humilhação pior do que aquela sofrida por Macron, e haja pressão dos opositores por novas eleições gerais, o chanceler, à frente de uma coligação de social-democratas, verdes e liberais, prefere esperar a poeira baixar. Resta saber se a poeira vai mesmo baixar. Trata-se do pior resultado do SPD em mais de um século. Dois terços dos alemães, indicam as pesquisas, desaprovam a administração de Scholz, que tem pela frente cerca de um ano de mandato.  •

Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A última linha’

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