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A última camada de teflon

Depois das festas na residência oficial, os britânicos estão perto de dizer basta a Boris Johnson

A última camada de teflon
A última camada de teflon
O premier preferiu uma desculpa esfarrapada a dizer a verdade – Imagem: Simon Dawson/N10 Downing Street
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A defenestração de um primeiro-ministro entre eleições geralmente é provocada por um evento sísmico. Neville Chamberlain foi obrigado a sair depois que a Noruega foi engolida por Hitler. A humilhação nacional do fracasso de Suez derrubou Anthony Eden. A impopularidade épica do imposto pessoal, que provocou tumultos, levou Margaret Thatcher a sair a contragosto. David Cameron sentiu-se obrigado a deixar o governo quando perdeu a aposta sobre o referendo do Brexit. Se Alexander Boris de Pfeffel Johnson entrar em breve para a galeria de primeiros-ministros derrubados, será porque ele participou de uma festa no jardim do Número 10 da Downing Street e seus assessores fizeram uma comemoração (“traga sua bebida”) que infringiu o lockdown na residência oficial na véspera do enterro do marido da rainha Elizabeth.

Nenhum outro governo teve um fim tão pateticamente pobre. Nenhum final para seu reinado de favela seria mais apropriado. Sempre foi altamente provável que romper as regras de modo arrogante e descarado, e depois mentir a respeito, seriam o fim de um primeiro-ministro com uma carreira histórica de desprezo casual pela verdade e a integridade.

Em sua vida relativamente curta, seu governo foi salpicado por escândalos. Houve o “expresso dos colegas” que acelerou contratos lucrativos da Covid-19 para amigos conservadores, que a Suprema Corte acaba de considerar ilegais. Houve a remoção de pacientes idosos dos hospitais para lares de repouso vulneráveis, no auge da pandemia. Tampouco devemos esquecer os relatos por diversas fontes de que Johnson declarou friamente que deixaria os corpos “se empilharem aos milhares” no inverno do ano passado, em vez de adotar medidas oportunas para conter o ressurgimento do vírus, uma opção horripilante que resultou em muitas fatalidades evitáveis e deixou a Grã-Bretanha com o maior número de mortes na Europa.

Essas e outras ofensas deveriam ter perturbado profundamente os conservadores, mas muitos parlamentares de seu partido Tory reagiram aos diversos escândalos com um encolher de ombros. Esses deputados hoje manifestam seu choque e horror diante da torrente de revelações sobre as bebedeiras no Número 10, mas poucos expressaram preocupação sobre desgraças anteriores quando não pareciam prejudicar seu apoio eleitoral. Não importa a qualidade da ética do primeiro-ministro, respondiam eles, sintam a amplidão do nosso apoio nas pesquisas. Quando acusações anteriores de turbidez moral resvalaram dele, os tories disseram a si mesmos que seu líder era revestido de uma camada de teflon tão grossa que nada colava. Alguns opinaram cinicamente que os eleitores sabiam que Johnson era um vilão mentiroso quando ele ganhou a eleição em 2019, por isso o comportamento chocante era esperado e estava (frase horrível) “incluído no preço”. Muitas vezes se afirmou que uma parcela substancial do público gostava de ter um “adorável bandido” no governo. “Todo mundo ama um pecador”, disse-me um veterano conservador no último outono, quando seu partido ainda tinha vantagem nas pesquisas mesmo enquanto o ­Wallpapergate e vários outros escândalos ferviam. Ele continuou: “Se Boris fosse pego ‘comendo’ uma cabra em Downing Street, as pessoas imediatamente fariam uma cerveja de cabra e a beberiam à sua saúde”.

Os eleitores não parecem mais dispostos a aceitar um “vilão mentiroso”

Esse veterano conservador teve uma profunda mudança de ideia. Hoje ele acha que o Número 10 provocou um escândalo tão revoltante para o público que será terminal mesmo para um escapista tão famoso. “Boris está torrado? Sim, está. Ele perdeu a armadura que costumava protegê-lo das regras normais da gravidade política. Ela evaporou. Definitivamente, acabou. A questão é quando.” Outro ex-ministro do gabinete concorda: “O teflon gastou. A probabilidade de ele nos levar à próxima eleição é muito pequena. Na verdade, quase zero”. Um terceiro deputado tory, antes um admirador fervoroso, disse: “Acho que terminou. Simplesmente, não consigo ver um retorno disso”.

Temos um escândalo de que nem mesmo o maior fazedor de truques consegue sair. A semiconfissão que ele finalmente fez na Câmara dos Comuns deixou de dissipar a comoção porque só foi extraída sob intensa pressão e após semanas de falsas negações. Sua tentativa de parecer contrito não funcionou porque foi um “não pedido” de desculpas tão insincero que aumentou a indignação sentida pelos muitos que foram atingidos pela pandemia. Todo mundo sabe que a única coisa pela qual ele realmente pede desculpas é por ser apanhado. Todo mundo também sabe disso: enquanto um grande número de britânicos morria, muitas vezes sem o conforto dos entes queridos, e milhões faziam sacrifícios para apoiar o que o seu governo lhes dizia ser um esforço coletivo para controlar a pandemia, a Downing Street de Johnson estava numa bebedeira.

É difícil dizer o que é mais espantoso. A flagrante quebra de regras, a estúpida arrogância disso ou a incrível frequência com que os moradores do Número 10 se comportavam, como se as leis não se aplicassem a eles. A frágil explicação do primeiro-ministro para a “garden party” da qual ele admite ter participado é que ele pensou que fosse um “evento de trabalho”. Essa desculpa ridícula pretende nos fazer acreditar que ele não percebeu que o álcool corria solto e que sua mulher e seus amigos estavam presentes. Ele teve de recorrer a essa defesa risível porque a alternativa é confessar que ele infringiu as regras de seu governo e depois tentou enganar o público e o Parlamento.

Muitos se uniram em torno da ideia de que as eleições de maio serão o teste definitivo. Isso é um fracasso de suas responsabilidades morais. Se ele é uma desgraça para o alto cargo que ocupa, será também uma desgraça se os eleitores punirem firmemente o governo nas urnas ou se os tories melhorarem sua péssima posição nas pesquisas. Na verdade, a maioria dos ­deputados conservadores está cansada desse escândalo porque ele os deixa com medo de perder o poder, não por causa do que ele diz sobre o caráter ético do primeiro-ministro. Eles nunca pensaram que ­Johnson fosse um homem de integridade reluzente que daria um ótimo primeiro-ministro. Sabiam quem ele era. Eles o tornaram líder porque pensaram que vencer é tudo o que importa na política, e ele parecia um vencedor. Muita gente no partido decidiu ignorar sua inadequação ao cargo. Se eles tivessem se importado com essa questão antes, não o teriam colocado no Número 10 para começar, nem encolhido os ombros de maneira tão cínica diante do horror que se seguiu, inescapavelmente. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1192 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE JANEIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A última camada de teflon”

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