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A terrível paralisia ocidental não pode se repetir na Síria

Uma solução para as agonias da guerra síria não deve envolver uma reação militar estúpida – nem a crueldade da inação. Por Ed Vulliamy

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Por Ed Vulliamy

A nauseante sensação de déjà-vu é inevitável. Daqueles três longos anos sangrentos na Bósnia-Herzegovina: bombas estourando em aldeias onde os idosos e os muito jovens se encolhiam em porões e os mortos não podiam ser enterrados enquanto John Major, David Owen ou Cyrus Vance articulavam seu último plano de paz impotente. Como os assassinos riam…

 

Ouvindo o depoimento de sobreviventes de campos de concentração e mulheres violentadas em série nos campos de estupro, enquanto lorde Carrington apertava a mão de Radovan Karadzic sob os candelabros, todo sorrisos. Tentando penetrar pelos caminhos das florestas na Srebrenica sitiada, em Gorazde e outras “áreas seguras” declaradas pela ONU, marteladas pela artilharia sérvia até virar poeira, enquanto o general norte-americano Wesley Clark dava de presente a seu colega bósnio-sérvio, Ratko Mladic, um quepe e pistola.

Testemunhando o sítio e tortura em Sarajevo, enquanto as eminências pardas Douglas Hurd e Malcolm Rifkind zombavam dos intervencionistas e sabotavam qualquer tentativa de melhorar, quanto mais conter, a chacina. A farsa obscura da diplomacia levou ao único lugar a que poderia levar: aquele almoço de cordeiro de leite entre o general Bernard Janvier, comandante da Força de Proteção da ONU, e o general Mladic, três dias antes de Mladic enviar os esquadrões de execução a Srebrenica para cometerem o pior massacre em solo europeu desde o Terceiro Reich. Essa foi a realização na Bósnia do mito, da mentira que chama a si própria de “comunidade internacional”.

Houve aqueles em Ruanda que contaram a mesma história, depois de um genocídio ainda mais concentrado, observado ainda mais casualmente por aqueles que se recusaram a tentar detê-lo. Duas décadas depois, vemos nova carnificina na Síria; outro assassino em massa megalomaníaco e sua máquina, que vai despejar ou afundar sua população no exílio ou no túmulo e não vai parar enquanto não terminar o serviço.

Embora os ecos sejam fortes e claros, a Síria não é a Bósnia — dois lugares ou situações nunca são os mesmos — enquanto a Grã-Bretanha e a França tentam levantar o embargo de armas, e concebivelmente armar aqueles que em taquigrafia chamam-se “os rebeldes”, enquanto os Estados Unidos se contorcem de indecisão e a Alemanha aconselha cautela.

Existem condições importantes. Primeiro, enquanto o exército bósnio se apresentava como uma estrutura, na Síria perguntamos: que rebeldes? E segundo, aquela carnificina na Bósnia se desenrolou antes da derrota no Iraque, que mudou tudo: aquela guerra não dá sinais de terminar para aqueles que ainda vivem com o pesadelo diário de carros-bombas e chacinas dez anos depois, esta semana. O “Ocidente” (seja o que isso for hoje) quer detonar um horror semelhante e duradouro na vizinha Síria? Esperamos que não.

É interessante que muitos de nós que pedimos a intervenção na Bósnia se opunham à invasão do Iraque com a mesma paixão, sentiam-se indecisos sobre a Líbia e o Mali e agora com a Síria. Fomos acusados de incoerência, e era uma tese a se responder, mas é uma importante, pois leva em conta nuance, política real mais que realpolitik; ela busca estar do lado da população, mais que do poder como a mera “percepção de interesses”, como Ralf Dahrendorf o descreveu.

Enquanto a Síria entra no abismo, os absolutistas escavam, como de costume. Há o que o sábio nesses assuntos, David Rieff, chama de “permagaviões” — uma combinação de “intervencionistas liberais” e guerreiros neoconservadores que, apesar de toda a destruição no Iraque e da próxima derrota no Afeganistão, ainda sentem, ele escreve em Foreign Policy, “o vento em suas costas”, graças à “Responsabilidade de Proteger” da ONU.

E há o que se poderia chamar, parodiando Rieff, os “permaimpotentes” (eles não são pombas, certamente), que se opõem a toda e qualquer intervenção de qualquer tipo por suas próprias razões. É uma estranha aliança entre a esquerda anti-imperialista e a escola de Hurd e Carrington com os quais encontrou causa comum nos Bálcãs, que cultivam sua surdez ao assassinato e fazem disso uma reação “racional”, “sensata”, meu rapaz.

Os campos “perma” adversários são conduzidos pela “percepção de interesses” e também pela máxima de que o inimigo de meu inimigo é meu amigo. Os permagaviões se opõem ao regime Assad como se opuseram a Saddam Hussein e ao coronel Khadafi — embora não no início: quando meu inimigo era o Irã, Saddam era meu amigo; quando a Shell queria um contrato na Líbia, a “guerra ao terrorismo” foi momentaneamente suspensa para devolver a Khadafi o terrorista de Lockerbie. Foram esses cálculos que levaram a CIA a dar a Osama bin Laden seu primeiro lançador de foguetes terra-ar no Afeganistão, com o qual derrubar aviões soviéticos, muito cheia de arrogância para escutar as opiniões dele sobre seu país.

Do outro lado, os da esquerda insistem que se pessoas como Slobodan Milosevic, Khadafi e Assad se opõem aos EUA (o que é discutível), sua sede de sangue deve receber um grau de leniência ou mesmo de apoio. Enquanto isso, na direita dura e cinza, existe aquela tradição geralmente muito britânica, hoje o manual dos cínicos: em caso de dúvida, apoie o valentão do bairro no interesse da “estabilidade” — isto é, império, que hoje em dia significa capitalismo do cartel global.

Nenhum deles tem a resposta na Síria. Na verdade, por que deveria haver uma “resposta” na Síria? Aconteça o que acontecer, será uma confusão. Mas por que tipo de confusão optaremos, qual é a confusão menos pior?

Se a Grã-Bretanha e a França conseguirem o que querem, terão de aceitar que a oposição na Síria contém uma corrente jihadista; ela inclui chefes guerreiros e pessoas que não pretendem copiar nossa suposta democracia modelo e o iluminismo capitalista. E também é impelida por verdadeiros combatentes da liberdade e milícias que — seja qual for seu programa político — defendem uma população civil sob um ataque aparentemente ilimitado.

A intervenção militar no molde da Líbia não é uma opção — os permagaviões exibem seu “sucesso” em Trípoli, mas não estão dispostos a que seu blefe seja contestado por uma guerra real; a Rússia tem uma tese — isto não é a ONU implementando a Responsabilidade de Proteger, isto é uma mudança de regime. Mas nenhum deles está fazendo nada — além de retorcer as mãos e ponderar como fizeram Hurd e Rifkind sobre a Bósnia, ou balbuciar planos de paz como fez Kofi Annan em Ruanda e hoje faz na Síria — como opção.

Sabemos que depois do Iraque a intervenção só pode ter resultados calamitosos, e que seus motivos são tão insinceros quanto perigosos. Sabemos como é tóxica a retórica impetuosa daqueles que nunca ouviram um tiro ou uma explosão de morteiro, mas que nos salões liberais e conservadores de Londres, Paris e Nova York pedem que outros façam a guerra.

Mas também sabemos de memória dos campos de estupro, Srebrenica, Gorazde e Sarajevo que aqueles que defendem não fazer nada nunca podem olhar nos olhos dos desesperados ou dos mortos. E sabemos que sua inatividade faz parte do que envia centenas de milhares para os campos de refugiados ao longo das fronteiras da Síria e enche as valas comuns, que seus cálculos secos são de fato assassinos.

Tendo passado todas aquelas noites em trincheiras, florestas e porões, e percorrendo estradas de montanha traiçoeiras com os combatentes da resistência na Bósnia traída e a população que eles tentavam em vão proteger, eu acharia difícil olhar nos olhos de um jovem miliciano sírio, ou dos fantasmas de sua família assassinada, e dizer: “Sinto muito, camarada, mas os políticos estão certos; não devemos atiçar as chamas e você não pode defender a si mesmo ou a seu povo”. Simplesmente não funciona.

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