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À sombra do radicalismo

A Flórida e a política para a América Latina

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O voto latino foi essencial para a vantagem de Trump sob Kamala Harris no estado. O senador Mark Rubio é um expoente da extrema-direita local e articula os grupos com interesses no subcontinente – Imagem: Giorgio Viera/AFP e Redes sociais
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E comum, há décadas, salientar o peso político da Flórida nas iniciativas e medidas adotadas pelos Estados Unidos em relação à América Latina. Na verdade, essa colocação é correta quando se analisa o peso dos latino-americanos, especificamente no Legislativo, sobretudo em relação ao notável lobby histórico dos cubano-americanos. Isto é realmente significativo, pois, de acordo com o último censo, de 2020, os cubano-americanos são apenas 2,4 milhões dos 62,5 milhões de latinos que vivem nos EUA, 3,8% do total.

Em geral, essa influência latina no Congresso tem-se manifestado em poucas questões relativas a um pequeno número de países: principalmente na política para Cuba e, em algumas situações, sobre a América Central (conflitos armados e migração), México (migração e crime organizado), Colômbia (drogas) e Venezuela (natureza do regime político).

Recentemente, a projeção da China na região tem atraído muita atenção e gerado preocupação em Washington. Portanto, não causam surpresa as resoluções da Câmara dos Representantes, patrocinadas pela congressista republicana da Flórida, María Elvira Salazar, e do Senado, entre eles Marco Rubio e Rick Scott, para comemorar, em 2023, os dois séculos da Doutrina Monroe e a urgência de se conter e reverter a mobilização de Pequim na região. Nem toda iniciativa da comunidade latina no Legislativo estadunidense deve ser entendida como uma preeminência decisiva na práxis da política externa dos governos no poder em relação à América Latina. Repercussão não implica decisão.

O estado tornou-se um epicentro do Partido Republicano sob Trump

Desde a vitória de Trump em novembro de 2024, surgiram reações iniciais sobre o lugar que a América Latina ocuparia na política externa dos Estados Unidos. Para alguns, desta vez a região será uma prioridade. Para outros, continuará a ser uma contrapartida secundária ou nada prioritária na ordem de importância que Washington proverbialmente lhe atribui. Independentemente das observações preliminares e da grande ou pequena relevância da região para o novo governo republicano, este artigo procura abordar e sopesar a importância e o alcance que a política para a América Latina poderá ter em consequência das nomea­ções de autoridades eleitas na Flórida.

Na minha opinião, a maior novidade que se prevê para a América Latina é a importância alcançada pela Flórida. Especialmente o papel e a influência no Executivo dos políticos locais, sejam de origem latina ou não. É bom lembrar, mesmo que possa parecer um detalhe, que ­Donald Trump, em seu primeiro mandato, mudou seu local de residência, em 2019, de Nova York – a Trump Tower – para a Flórida – a mansão Mar-a-Lago. As contribuições para sua campanha presidencial constituem dados relevantes. As doações originárias da Flórida atingiram 115,6 milhões de dólares, o que garantiu ao estado a quarta posição, com 10,8% do total arrecadado pela campanha do republicano. Somente as contribuições da área metropolitana de West Palm Beach­–Boca ­Raton foram de 50,5 milhões de dólares. O condado de Palm Beach, onde se localiza a mansão Mar-a-Lago, abriga o maior número de milionários da Flórida. Ao mesmo tempo, o proprietário do fundo hedge Citadel LLC, Kenneth Griffin, com uma fortuna de 35 bilhões de dólares e natural da Flórida, doou 100 milhões a candidatos republicanos à Câmara dos Representantes e ao Senado. A Flórida tem sido, portanto, um valioso bastião de fundos eleitorais para o Partido Republicano, em geral, e para Trump, em particular.

Os cubano-americanos esperam que Trump imponha mais sanções à ilha

Outro elemento a se levar em conta é a presença ativa de grupos de pensadores (think tanks), organizações e atores não estatais de diferentes ordens, com agendas conservadoras e radicalizadas diversas, assim como suas propostas, seu impacto entre os republicanos e como um canal para facilitar a entrada no Executivo. Um deles é o James Madison ­Institute, cuja missão é promover as benesses do capitalismo, o Estado mínimo e a plena liberdade econômica. No contexto da Universidade Internacional da Flórida funciona o grupo de pensadores – e assim se identifica – Adam Center for Economic Freedom, que visa inspirar os líderes sobre o valor do mercado livre e seus efeitos na liberdade e na prosperidade. Há também o capítulo da Flórida do eminente American First Policy ­Institute, fundado em 2021 para defender e promover as políticas públicas e promessas de Trump de “Tornar a América Grande Novamente”. Sua presidente, Linda ­McMahon, que doou 20,3 milhões de dólares à campanha republicana, foi nomeada para o Departamento de Educação, e sua diretora-executiva, Brooke Rollins, para o Departamento de Agricultura.

A Conferência de Ação Política Conservadora, criada em 1974 – e da qual Trump participou pela primeira vez em 2011 –, escolheu a Flórida para sediar as conferências anuais em 2021 e 2022. Em novembro de 2024, houve outra reunião da CPAC em ­Mar-a-Lago, com o presidente eleito como figura central após sua vitória. O presidente argentino, Javier Milei, participou desse evento. A CPAC é uma área-chave para a transnacionalização da extrema-direita, na qual, segundo Rebecca Sanders e Laura Dudley Jenkins, manifesta-se um “populismo patriarcal”, movimento que promete “defender os interesses do ‘povo puro’ contra as ‘elites corruptas’…” e no qual globalistas e feministas “são enquadrados como perigosas ameaças à restauração da grandeza nacional”.

A Flórida abriga ao menos 114 organizações extremistas

Além disso, a Flórida é o local onde opera a Foundation for Government ­Accountability, think tank cujo leitmotiv é reduzir o Estado do Bem-Estar Social e recomendar políticas pró-mercado, influenciando mudanças legislativas nos níveis estaduais e federal. É bom mencionar que a FGA faz parte, ao lado do The James ­Madison Institute, do conselho consultivo de The Heritage Foundation, que desenvolveu o chamado Projeto 2025, que Trump deverá implementar a partir de 20 de janeiro. Alguns afirmam que a AFPI será, no entanto, o grupo de reflexão mais influente no segundo mandato. As nomeações, primeiramente, e as políticas a serem executadas, mais tarde, revelarão se um ou outro think tank é mais poderoso e decisivo.

Consequentemente, não é exagero dizer que a Flórida se tornou epicentro essencial do Partido Republicano. Da mesma forma é um foco vital do movimento Make America Great Again, enquanto Miami consolidou-se como refúgio para a direita latina. Também vale mencionar que 114 organizações extremistas de vários tipos estão localizadas na Flórida (o segundo estado depois da Califórnia, com 117). De acordo com um relatório da Liga Antidifamação, “na Flórida existe uma rede extensa e interligada de supremacistas brancos com outros grupos de extrema-direita”. De fato, nos últimos anos, o estado tornou-se, segundo investigações jornalísticas, território fértil para grupos de extrema-direita e sua projeção nacional.

Trump trocou Nova York pela mansão em Mar-a-Lago. Linda McMahon, uma das maiores doadoras da campanha, vai cuidar da Educação – Imagem: Scott Olson/Getty Images/AFP e Gage Kidmore

Consideremos agora a questão da população latina da Flórida. Há uma série de dados que merecem comentário. Trump derrotou Kamala Harris por uma diferença categórica, 56% a 43% dos votos, vencendo em 61 dos 67 condados. Nesse contexto, o voto latino foi crucial. Para entender, é conveniente analisar, por exemplo, o porcentual de latinos de diferentes origens e suas áreas de residência. Dos 2,4 milhões de cubano-americanos, 64% vivem na Flórida. Dos 450 mil nicaraguenses-americanos, 37% vivem naquele estado. E dos 640 mil venezuelanos, 47% residem lá. Acrescente-se que, do total de norte-americanos de origem colombiana (1,4 milhão), 31% vivem na Flórida, bem como o fato de que do total de origem argentina (290 mil), 23% também residem no estado.

Além disso, 54% dos cubano-americanos da Flórida são eleitores republicanos registrados. O voto masculino latino para Trump atingiu 64% (em 2020 foram 48%) e o voto feminino foi de 52% (em 2020 foram 45%). Deve-se acrescentar que o voto católico, a maioria dos latinos na Flórida, a favor de Trump teve uma diferença de 29 pontos em relação ao voto em Harris. No condado de Miami-Dade, com uma população latina de 68%, Trump obteve 55% dos votos. Na eleição de 2024 para a Câmara dos Representantes, os republicanos da Flórida conquistaram 20 cadeiras e os democratas, 8. Na eleição para o Senado, o republicano Rick Scott obteve 55,6% dos votos, enquanto a democrata Debbie Mucarsel-Powell, 42,8%. Na eleição de 2018, a diferença a favor de Scott contra um adversário democrata foi mínima, 0,12%. Em suma, a base de apoio aos republicanos e a Trump entre os latinos na Flórida foi eloquente, o que parece ter feito do estado uma força desse partido e, claro, do presidente reeleito. Vale a pena sublinhar que, em questões internacionais, os latinos não são diferentes da maioria dos outros grupos votantes em termos do apoio à liderança global de Washington e à superioridade militar dos Estados Unidos. Vale destacar também que, nas últimas eleições, as prioridades da população latina eram internas – inflação, emprego, custo da habitação e da saúde, entre outras – e na interseção entre o interno e o externo, a questão migratória. Esta última não deve ser confundida com o apoio à deportação em massa. Além disso, de acordo com uma pesquisa de outubro de 2024, três quartos dos eleitores reconhecem que os migrantes aceitam empregos que os cidadãos norte-americanos não querem. •


*Professor de Relações Internacionais da Universidade Torcuato Di Tella, em Buenos Aires. Esta é a primeira de três partes deste artigo.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1345 de CartaCapital, em 22 de janeiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘À sombra do radicalismo’

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