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A ressaca do Brexit

O Partido Conservador perde apoio popular diante dos sacrifícios impostos pela saída da União Europeia

A ressaca do Brexit
A ressaca do Brexit
Infiltrado? Eleitores tories acreditam que o premier Sunak e outros integrantes do partido planejam uma guinada à esquerda. O Brexit virou pesadelo - Imagem: Martyn Wheatley/N10DS e Wiktor Szymanowics/NurPhoto/AFP
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Há cerca de três anos, Boris Johnson conquistou a vitória em uma eleição disputada pelos conservadores sob o slogan simples: “Faça o Brexit”. Na manhã seguinte, o então primeiro-ministro exortou todos a “encontrar um desfecho” para a questão europeia que dividiu seu partido e o país por tanto tempo. Ele pediu ao povo britânico que se unisse, “deixasse a cura começar” e se concentrasse no NHS, o sistema público de saúde. O Partido Conservador rompeu a “parede vermelha”. Eles pareciam invencíveis, enquanto o trabalhismo enfrentava questões existenciais. Agora, a cerca de dois anos para a próxima eleição geral e com Johnson e sua sucessora, Liz Truss, ambos depostos pelos deputados da legenda, os trabalhistas têm entre 15 e 20 pontos porcentuais à frente nas pesquisas.

O NHS está de joelhos e assolado por greves, sem dinheiro e pessoal, inundado de pedidos de demissão. Nem 1 centavo dos 350 milhões de libras semanais que Johnson prometera ao serviço de saúde após a aprovação do Brexit pingou nos cofres do sistema. Cada vez mais, o empreendimento do Brexit é visto por líderes empresariais e economistas como um desastre autoinfligido que enfraqueceu severamente a economia britânica, apesar das contínuas afirmações recentes em contrário do ex-ministro de Oportunidades, Jacob Rees-Mogg. Para os brexiters que seguiram Johnson, não era para ser assim. Ele havia prometido um novo amanhecer de independência, desregulamentação, prosperidade baseada em acordos comerciais globais e impostos mais baixos. Em vez disso, a realidade é de diminuição da influência do Reino Unido, acordos comerciais insatisfatórios ou nenhum (principalmente com os EUA), burocracia extra, exportações reduzidas, Produto Interno Bruto mais baixo e impostos mais altos.

O Brexit e o medo de um governo de Jeremy Corbyn ajudaram o Partido Conservador a obter uma maioria de 80 assentos. Mas os apoiadores descontentes do Brexit se sentem traídos. Segundo eles, a iniciativa foi catastroficamente mal administrada e precisa de nova gestão. E exatamente isso oferece o Reform UK, última encarnação do partido ­Brexit, que aparece com 8% em recente pesquisa da Opinium para The Observer, 1 ponto porcentual atrás dos liberais democratas e em ascensão. Antes mesmo de a agremiação ser particularmente conhecida, 19% dos entrevistados disseram considerar o voto no Reform UK e sua agenda populista sobre imigração, gestão adequada do Brexit e redução dos impostos, entre eles 23% dos eleitores conservadores e 11% trabalhistas.

As pesquisas eleitorais apontam de 15 a 20 pontos de vantagem para os trabalhistas

Um desses convertidos é o empresário David White, de Barnsley. Até poucos dias atrás, ele era conselheiro conservador na cidade de South Yorkshire, mas depois desertou e se juntou ao Reform UK. “Quando anunciei a mudança, olhei para minha página no Facebook com um pouco de apreensão”, diz. “Eu esperava um pouco de críticas, mas tive apoio maciço, até mesmo dos conservadores mais renomados. Mesmo os trolls que normalmente aparecem não disseram nada. Acho que, de repente, perceberam que o Reform UK é a verdadeira ameaça nas próximas eleições.” White coloca a imigração no topo de sua lista. “É uma das principais questões do Brexit. Está fora da escala. Há um hotel na estrada lotado. Recebi um vídeo, na outra noite, de imigrantes neste hotel, do lado de fora jogando futebol à meia-noite com os holofotes acesos e tomando café, e isso irrita.”

Por toda esta parte de South ­Yorkshire, como em grande parcela do muro vermelho, há desilusão com os trabalhistas e também com os conservadores. Lynne Dunning mora perto da antiga vila mineira de Goldthorpe, a 13 quilômetros de Barnsley, há 47 anos. “Os cidadãos se sentem abandonados por ambas as partes”, afirma. “Votei no Brexit, mas o que temos não é o que os eleitores votaram. Não parece ter acontecido como foi prometido. Acho que muitos se sentem assim.”

Um grupo de figuras proeminentes da direita acaba de lançar uma tentativa de obter maior controle sobre o Partido Conservador, para impedir o que consideram uma mudança para a esquerda, para um tipo social-democrata de Partido Tory. Peter Cruddas, ex-tesoureiro da legenda, está envolvido na Organização Democrática Conservadora, que visa dar aos integrantes mais poder sobre as seleções de deputados e eleições de liderança. Segundo ele, um “arrasto para a esquerda por parte da atual liderança” abre o flanco para a ascensão de agremiações como o Reform UK. “Absolutamente, temo isso”, diz ­Cruddas. “Existe um canal para gente de direita e centro-direita encontrarem um novo lar, e esse é o Partido da Reforma. Se os integrantes do Partido Conservador querem ser de centro-esquerda, isso é com eles.

Mas então acho que você verá grandes mudanças no cenário político. Porque, quer você concorde ou não, acredito que este país é um eleitorado de centro-direita. O que vemos hoje é um golpe e um sequestro do Partido Conservador pelo centro-esquerda. Os tories seniores com quem falei também estão frustrados.”

Cruddas prossegue: “Algo vai acontecer, pois os filiados não querem Rishi ­Sunak. Ele foi imposto. As probabilidades estão contra, mas ele está lá sob falsos pretextos. Somos uma organização de centro-direita que quer capacitar os integrantes e seguir os nossos princípios. Achamos que o Partido Conservador foi infiltrado por não conservadores”. Os sentimentos de traição do Brexit, avalia, contribuem para o descontentamento. “Votamos pelo Brexit. E precisamos continuar a controlar as nossas fronteiras. Estas são políticas de centro-direita pelas quais o país votou. E até agora não aconteceram e vamos ser punidos nas urnas.”

Com esse tipo de opinião agora bastante comum no Partido Tory, Richard Tice, líder do Reform UK, saboreia a perspectiva de mais deserções. “Estamos potencialmente vendo os últimos dias do último governo de maioria conservadora em nossa vida”, diz. “E esse é um pensamento emocionante.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1241 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A ressaca do Brexit”

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