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A realidade e a expectativa

A despeito das recentes conquistas de Joe Biden, os eleitores não se animam com a sua reeleição

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O democrata estava inspirado no discurso do Estado de União - Imagem: Andrew Caballero-Reynolds/AFP
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Foi o momento em que o discurso do Estado da União dos EUA, antes um assunto sóbrio pontuado por aplausos, se transformou numa briga verbal mais parecida com a Câmara dos Comuns da Grã-Bretanha. Joe Biden acusou republicanos de quererem “fazer a economia de refém” e cortar os benefícios da previdência social. “Buuu!”, “não!” e “mentiroso!” foram algumas das respostas. Os presidentes norte-americanos normalmente ignoram os ruidosos, mas Biden optou por enfrentá-los.

“Então, pessoal, como todos nós aparentemente concordamos, a previdência social e o Medicare estão fora dos livros agora, certo?”, provocou. “Eles não devem ser tocados? Tudo bem, tudo bem. Conseguimos unanimidade!” Biden fez uma oferta aos republicanos que eles não poderiam recusar: levantar-se de seus assentos e apoiar os idosos.

De uma só vez, o combativo Biden superou seus oponentes e, ao menos em parte, acalmou as dúvidas de que, aos 80 anos, ele tem força e coragem para uma árdua campanha de reeleição no próximo ano. Foi uma vitória importante num momento em que as pesquisas de opinião mostram que a maioria dos colegas democratas anseia por nova geração de líderes.

“Como Muhammad Ali, ele dançava como uma borboleta e picava como uma abelha”, resumiu John Zogby, escritor e pesquisador. Mesmo assim, um discurso não será suficiente para resolver o contínuo enigma político dos dois Bidens. Um é o Biden visivelmente energizado por vaias republicanas, que encontrou uma maneira de esmagá-las sem complacência. O Biden que reuniu o Ocidente para apoiar a Ucrânia e ajudou os democratas a desafiar a história nas eleições de meio de mandato. O Biden que desfiou a lista mais importante de realizações legislativas desde o presidente Lyndon ­Johnson, há mais de meio século.

Mas o outro Biden não foi embora. Foi ele quem começou seu longo discurso sobre o Estado da União – que atraiu a segunda menor audiência de tevê em 30 anos – letargicamente, descrevendo Chuck Schumer como líder da “minoria” no Senado, quando deveria ter dito “maioria”, e falando pouco sobre os direitos ao aborto. Esse é o Biden que presidiu o aumento dos preços dos alimentos e da gasolina, atrapalhou-se na retirada dos EUA do Afeganistão e deixou documentos confidenciais em sua garagem.

Uma pesquisa feita no fim de janeiro pela Associated Press-NORC Center for Public Affairs Research descobriu que 37% dos democratas dizem que Biden deve tentar um segundo mandato, abaixo dos 52% nas semanas anteriores às eleições de meio de mandato do ano passado. Em geral, 41% aprovam a forma como Biden está lidando com seu cargo de presidente e apenas 22% dizem que ele deveria concorrer novamente.

Apenas 37% dos democratas acham que o presidente deve tentar um segundo mandato

Entre os democratas com 45 anos ou mais, 49% dizem que Biden deve concorrer à reeleição, quase tantos quanto os 58% que disseram o mesmo em outubro. Mas entre os menores de 45 anos apenas 23% pensam o mesmo, depois que 45% disseram isso antes das eleições. Muitos eleitores acreditam que a idade do presidente é um risco. Com pessoas focadas em sua tosse, andar hesitante e gafes, o trabalho mais estressante do mundo seria mais adequado para alguém mais jovem.

Outra pesquisa, do Washington Post-ABC News, mostrou que 62% dos americanos acham que Biden realizou “não muito” ou “pouco ou nada” durante sua presidência, enquanto 36% dizem que ele realizou “bastante” ou “muita coisa”. Cerca de 60% dizem que ele não fez progresso na criação de mais bons empregos em sua comunidade, embora tenha supervisionado o ritmo mais rápido de crescimento de empregos na história dos EUA, e o desemprego esteja em seu nível mais baixo desde 1969.

A desconexão pode parecer um chute na boca de Biden depois de quatro grandes vitórias legislativas: uma lei de infraestrutura bipartidária, uma legislação que aumenta a produção doméstica de chips de computador, medidas fiscais e de gastos que ajudam a enfrentar a crise climática e melhorar a capacidade do governo de aplicar o código tributário.

A diferença entre a percepção e a rea­lidade é difícil de explicar. O caos dos anos de Donald Trump, uma pandemia que matou mais de 1 milhão de americanos e um acerto de contas contínuo sobre a justiça racial inevitavelmente deixaram a nação desorientada. Mas alguns críticos argumentam que a Casa Branca falha em comunicar suas conquistas.

“As mensagens do governo foram medíocres”, avalia Michael Steele, ex-presidente do Comitê Nacional Republicano. “Não foram bem coordenadas. Não foram bem reforçadas pelos chefes de agências e membros do gabinete que podem mostrar ao país o trabalho feito.”

presidente não soube comunicar as realizações de seu governo e, agora, sofre com uma oposição mais forte – Imagem: iStockphoto e Lawrence Jackson/Official White House PhotoSteele aponta como exemplo o projeto de lei de infraestrutura de 1,2 trilhão de dólares, assinado por Biden no fim de 2021. “Todo mundo está pulando para cima e para baixo, mas o que eles não explicaram ao país foi que agora temos de colocar em prática os regulamentos que corresponderiam à alocação desses dólares… Essa parte da conversa nunca aconteceu, então os eleitores estão dizendo: ‘Bem, eu não vejo nenhum impacto disso. Eles não estão fazendo nada na minha comunidade’.” O passo em falso ­custou aos democratas o controle da Câmara dos Deputados, emenda. “Agora assisto a comerciais do presidente cumprindo suas promessas, e eu diria: sim, com quatro ou cinco meses de atraso.”

Biden não conseguiu deslanchar a reforma da polícia e os direitos de voto, o que poderia causar desilusão entre os eleitores negros. Ele continua a defender mudanças, mas não pediu explicitamente a aprovação da Lei George Floyd de Justiça no Policiamento. Ativistas argumentam que ele deveria deixar claro que os republicanos estão atrapalhando. “Há uma razão pela qual não temos essas leis, e não é o presidente Biden”, diz Rashad Robinson, presidente do grupo de defesa Color of Change. “Mas, se não contar por que a reforma ficou pelo caminho, ele será culpado.”

Um dia após seu discurso sobre o Estado da União, Biden viajou para Wisconsin, e no dia seguinte foi para a Flórida, enquanto altos funcionários do governo cruzam o país para divulgar suas realizações. A estratégia pode ser eficaz em nível local, mas compete com manchetes nacionais mais atraentes, como o balão espião chinês.

“Você precisa ver as coisas acontecendo. Você tem de ver as pontes sendo construídas. Você tem de ver os túneis sendo consertados. Você tem de ver os aeroportos”, enumera Elaine Kamarck, ex-funcionária do governo Bill Clinton. “O desafio é tornar isso real. Este é um problema de tempo político. O mandato de um presidente é curto, geralmente leva mais tempo para fazer grandes realizações.” Hoje pesquisadora sênior em estudos de governança no grupo de pensadores do Instituto Brookings, em Washington, ­Kamarck acrescenta: “Biden precisa fazer algo que fique nos livros. Ele tem de fazer alguma coisa. Ele pode dizer isso até que as vacas voltem para casa, mas, se não houver realidade em campo, não importará”.

As maiores realizações legislativas de Biden no primeiro mandato quase certamente ficaram para trás. Agora, ele deve trabalhar com maioria republicana agressiva na Câmara, que deseja cortar gastos em troca da suspensão da autoridade legal de empréstimos do governo, além de iniciar diversas investigações sobre a resposta à pandemia, à retirada do Afeganistão e aos negócios de seu filho, Hunter Biden.

O desemprego está no menor nível desde 1969. Ainda assim, a maioria acha que Biden fez pouco nesse tema

Biden enfrenta ainda dúvidas persistentes dentro do próprio partido. Eleito pela primeira vez para o Senado por ­Delaware, em 1972, ele está no cenário político nacional há mais de meio século e é o presidente dos EUA mais velho da história. Seus tropeços verbais – ele recentemente chamou o congressista Don Beyer de “Doug” quatro vezes – recebem mais escrutínio do que nunca.

Biden pode enfrentar outra eleição contra Trump, ex-presidente que sofreu dois processos de impeachment por instigar uma violenta tentativa de golpe em 6 de janeiro de 2021. Ainda assim, numa revanche hipotética, 48% dos eleitores registrados disseram que seriam a favor de Trump, em comparação com 45% que preferem Biden, segundo a pesquisa do Washington Post-ABC News.

Julián Castro, ex-secretário de Habitação do presidente Barack Obama, observa que essa descoberta mina o consenso geral de que os democratas estão satisfeitos com Biden enfrentando Trump. “Dois anos é muito tempo, e é apenas uma pesquisa, mas, se ele está se saindo tão mal depois de uma série de vitórias, isso deve ser preocupante”, tuitou Castro.

Biden beneficia-se da falta de um sucessor óbvio. Sua vice-presidente, ­Kamala Harris, teve índices de aprovação igualmente baixos e ainda não se destacou como a escolha automática. O secretário de Transportes, Pete Buttigieg, tem apenas 41 anos, e uma geração promissora de governadores democratas é amplamente vista como ainda não pronta.

“Costumo perguntar aos democratas que gostam de falar poeticamente sobre Biden não ser seu candidato: qual governador ou parlamentar democrata vai desafiar um presidente em exercício?”, indaga Steele, que serviu como vice-governador de Maryland de 2003 a 2007. “Todas as vezes que vimos isso acontecer, não terminou bem para o desafiante. Este é o cavalo que o ajudou na tempestade. Este é o cavalo de que você precisa para cavalgar à noite, é assim que as coisas são.”

Muitos republicanos reconhecem que Biden teve uma boa noite no discurso do Estado da União, mas acreditam que ele pode ficar vulnerável nas eleições de 2024 se enfrentar alguém mais jovem e que não carrega a bagagem política de Trump. Ron DeSantis, governador da Flórida, e Nikki Haley, ex-governadora da Carolina do Sul, estão entre os candidatos em potencial.

“Havia muita conversa sobre Reagan perder, Reagan estar fora, Reagan não estar mentalmente bem – e então Reagan fazia algo e as pessoas viam por si mesmas, e isso limpava a barra e acalmava a conversa por um tempo”, comenta Ed ­Rogers, consultor político que trabalhou no governo de Ronald Reagan, o homem mais velho a servir como presidente até Trump. “Biden certamente fez isso. O discurso foi benfeito, mas as pessoas não enxergam suas vidas melhores só por um discurso.”

Rogers avalia que Biden ganhará a indicação democrata para 2024 e está bem colocado nas eleições gerais, mas nada está garantido. “Reelegemos 75% dos nossos presidentes. Se você tivesse de apostar hoje, apostaria no titular. Mas, se não for Trump, se aparecer alguém como um candidato de mudança enérgica, Biden pode ser derrotado.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1247 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A realidade e a expectativa”

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