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A nova velha casta

Contra as denúncias de corrupção que atingem a irmã, Javier Milei recorre à teoria da conspiração e à censura

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Os 3% de Karina, “chefe” do irmão, viraram piada – Imagem: Juan Mabromata/AFP
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A poucos dias das eleições legislativas no poderoso estado de Buenos Aires, com 17 milhões de habitantes, o governo de extrema-direita argentino está em risco devido ao vazamento de gravações de áudio que revelam subornos a Karina Milei, irmã do presidente e secretária-geral da Presidência.

A política encerra surpresas. Quando tudo parece amarrado, e bem amarrado, como o ditador Francisco Franco sonhava que deixaria a Espanha após sua morte, aparece um cisne negro e as coisas mudam de um momento para o outro. É o que acontece com Javier Milei. O vazamento de gravações de áudio do diretor da Agência Nacional para a Deficiência, nas quais o suborno é revelado, deixou o governo de extrema-direita paralisado, desorganizado e sem reflexos.

A Argentina é rápida para os apelidos. O escândalo já tem um nome: “­Karinagate”. A secretária-geral da Presidência é a figura mais poderosa do governo. O irmão a chama de “O Chefe”, sim, no gênero masculino. Karina também é a organizadora política de Milei. O atual presidente assumiu o cargo em 10 de dezembro de 2023, como um outsider, sem partido político, e ao longo do último ano e meio ela construiu a estrutura nacional de seu grupo, La Libertad Avanza. O problema para Karina, e para Milei, é que os argentinos adoram humor, até mesmo o humor negro em meio a desgraças. E assim, em vez de inspirar medo, como antes, a secretária-geral protagoniza uma série interminável de memes e vídeos.

Diego Spagnuolo, diretor da Agência de Deficiência, que atende 1 milhão de argentinos, afirmou nas gravações de áudio vazadas que existe um esquema de suborno bem montado. O montante chega a 8% das compras de medicamentos e próteses. Só Karina ficaria com 3%.

O número 3 virou uma piada por si só. Alguém na rua diz “três” e os que estão ao lado riem. Até um time de futebol apresentou sua escalação e estava sem um jogador, o de número 3. Era óbvio. Nas redes sociais, a resposta foi: “Claro, porque Karina ficou com o 3”.

Um belo poema de José Martí, Versos Simples, deu origem a ­Guantanamera, canção cubana conhecida em todo o mundo. O refrão da canção original é ­Guantanamera/ guajira ­guantanamera. A inventividade argentina manteve a música e substituiu a letra: Alta coimera/ Karina es ­alta ­coimera. Coimera é alguém que recebe propina. “Alta” é usado, na gíria argentina ­atual, como sinônimo de “muito”.

O problema para os irmãos Milei é que o cisne negro apareceu justamente quando as eleições legislativas estavam marcadas para o domingo 7, na província de ­Buenos Aires. Ela tem o mesmo nome do Distrito Federal, mas é um estado com uma potência equivalente à de São Paulo. Representa 40% do Produto Interno Bruto e 50% da produção industrial do país. O estado responde por 38% do total nacional.

Desde 2019, Buenos Aires é governada pelo peronista Axel Kicillof, ex-ministro da Economia de Cristina Kirchner, que se tornou um dos líderes do peronismo. Tanto que, em 2023, quando o peronismo foi derrotado nacionalmente por ­Milei, Kicillof foi reeleito e manteve o cargo de governador.

Para destruí-lo como alternativa política, o presidente parou de enviar as verbas que o governo nacional é legalmente obrigado a lhe destinar, para merenda escolar, subsídios para transporte, recursos de segurança pública e complementos salariais para professores. E, principalmente, suspendeu todos os projetos de infraestrutura, incluindo manutenção de ruas, obras de saneamento e construção de moradias.

O escândalo foi apelidado de “Karinagate”

É difícil dizer se Kicillof dará outro Grito do Ipiranga no domingo 7. Pesquisas hesitam em fornecer números conclusivos. Elas convergem, no entanto, em vários pontos. Vamos a eles:

1. Ao contrário de escândalos anteriores, como o envolvimento do presidente na criação de uma moeda meme, a $Libra, atualmente sob investigação por suposta fraude nos Estados Unidos, o suborno em uma área sensível como o atendimento a deficientes é facilmente compreensível.

2. O “Karinagate”, portanto, soma-se ao “$Libragate”, e a combinação tem um impacto político cada vez mais negativo no governo Milei.

3. O presidente conseguiu reduzir relativamente a inflação, que está abaixo de 3% ao mês, mas há uma frase que, segundo todas as pesquisas, é repetida por mais da metade dos entrevistados: “Não consigo fechar o mês”. Para muitas famílias, o fim do mês não é no dia 30 ou 31, mas no 20, 15 ou 10. As vendas em supermercados e comércios locais estão em queda e a construção está paralisada. Com exceção da elite, só vive bem, mas não se sabe por quanto tempo, a classe média, que aproveita o dólar barato para invadir o Brasil ou ­Miami. Sete milhões de habitantes deixaram o ­país este ano, de um total de 47 milhões.

4. O fascínio inicial por Milei não existe mais, e muitos desencantados podem não sair para votar nos candidatos peronistas no dia 7 e ficar em casa. Na Argentina, o voto é obrigatório, mas as multas são insignificantes.

O governo está tão abalado pelo “Karinagate”, que perdeu até o controle da conversa nas redes sociais, um de seus maiores trunfos. Ficou uma semana sem responder. Disse que as propinas não existiam, mas demitiu Spagnuolo da Agência de Deficiência. E depois inventou conspirações implausíveis. A mais recente consistiu no processo civil e criminal contra dois renomados jornalistas, Mauro Federico e Jorge Rial, que divulgaram os vazamentos. A ministra da Segurança Nacional, Patricia Bullrich, ex-exilada no Brasil durante a ditadura, que transitou por vários partidos e se tornou ativista de extrema-direita, afirmou que os jornalistas faziam parte de um complô arquitetado por Vladimir Putin e espiões russos, o Irã e o chavismo venezuelano.

O governo conseguiu, na terça-feira 2, persuadir o juiz Patricio Marianello, bastante criticado, a proibir a divulgação dos áudios. Segundo o maior especialista argentino em liberdade de expressão, o advogado Damián Loreti, trata-se de “um ato de censura prévia contrário à Constituição e às normas do sistema interamericano de direitos humanos”.

A ofensiva desencadeou uma onda de indignação em defesa da liberdade de expressão que ultrapassou as margens do peronismo e acabou abrangendo todos os setores políticos, exceto La Libertad Avanza. O grupo de Karina, ao mesmo tempo, começou a se fragmentar. Uma parte formou o bloco “Coerência” na Câmara dos Deputados. Uma de suas integrantes, a deputada federal Marcela Pagano, denunciou a nomeação pela Casa Civil argentina de José Luis Vila, conhecido agente de inteligência, como Secretário de Assuntos Estratégicos.

No governo, todos desconfiam de todos. E as expectativas da oposição se concentram no domingo 7. Uma vitória do governo não acabará com a tensão, mas a impulsionará. Uma vitória peronista será mais um Grito do Ipiranga. •


*Colunista do jornal Página/12 e comentarista do programa de televisão QR, dirige o site de política e economia Y ahora qué.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1378 de CartaCapital, em 10 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A nova velha casta’

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