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A nova Jerusalém

Na Cidade Santa, os judeus estão comprando propriedades de árabes, visando “recuperar” o antigo setor muçulmano

Vista da Cidade Velha em Jerusalém
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Por Harriet Sherwood

No centro da Cidade Velha de Jerusalém, a Via Dolorosa – o caminho que Jesus percorreu, carregando uma cruz de madeira, até o local de sua execução pública, há quase dois mil anos – cruza com a movimentada avenida El-Wad. É aqui que a família Najib encontra uma obstrução quase toda vez que um deles sobe os degraus de pedra gastos até a casa onde vivem há três gerações.

A obstrução é um guarda de segurança israelense com uma arma a tiracolo, com um boné de beisebol a obscurecer seu rosto e uma atitude intransigente escrita em suas feições. Segundo parentes da família palestina, ele para no meio da escada sombria, com seu corpo quase ocupando a passagem estreita para os andares superiores.

Ele não se move, dizem. Às vezes eles passam raspando, desviando os olhos, desejosos de evitar qualquer confronto. Às vezes defendem seu território e até discutem: “Deixe-nos passar, esta é nossa casa, saia do nosso caminho”. Esses encontros podem trazer uma vitória fugaz, mas raramente duram mais que um ou dois segundos. Na realidade, os Najib temem que eles e outros estejam lutando uma batalha já perdida.

O ambiente dessa batalha é a histórica Cidade Velha: um pequeno enclave murado de menos de um quilômetro quadrado dentro da extensa cidade que é Jerusalém, dividida em setores imprecisos para muçulmanos, judeus, cristãos e armênios. É o coração do conflito israelense-palestino que já dura décadas, o centro das grandes religiões monoteístas do mundo e um ímã para peregrinos e turistas de todo o mundo. Nessa encruzilhada da fé, padres, rabinos e imames se espremem com mochileiros em trajes exíguos enquanto caminham pelas traiçoeiras pedras escorregadias de seus becos estreitos. Bandos de peregrinos da Europa Oriental, África Ocidental e América Latina disputam espaço com judeus ultraortodoxos e muçulmanos devotos que seguem a rezar na Igreja do Santo Sepulcro, no Muro das Lamentações ou na Mesquita de Al-Aqsa.

Mas, longe das lojas de suvenires que vendem artigos religiosos, tabuleiros de xadrez com madeira de oliveira e adornos para a dança do ventre, uma luta religiosa e nacionalista está aguçando as tensões. Os palestinos dizem que um programa de “judaização” da Cidade Velha está se acelerando; colonos judeus com motivos ideológicos e inspiração bíblica insistem que estão simplesmente recuperando a terra que lhes foi dada por Deus.

Por volta de mil colonos judeus hoje vivem entre 31 mil palestinos no setor muçulmano da Cidade Velha, ocupando casas que foram habitadas por famílias muçulmanas durante décadas ou séculos e exibindo bandeiras israelenses nos muros e telhados de suas propriedades. São os combatentes na linha de frente de uma batalha mais ampla – apoiados pelo governo israelense, autoridades locais e serviços de segurança — para garantir o controle judeu de Jerusalém e reduzir ao mínimo sua população palestina.

Doze integrantes da família Najib – oito adultos e quatro crianças – vivem nos três quartos de seu apartamento no primeiro andar na rua El-Wad. Ebtahaj Najib, 58, mudou-se para a casa no dia em que se casou com seu primo em 1973, e seus nove filhos nasceram e foram criados ali, inclusive seu filho Youssef, de 38 anos. Seu marido morreu oito anos atrás.

Por costume, as famílias extensas palestinas vivem em conjunto ou próximas, mas não há espaço suficiente na casa dos Najib e alguns de seus filhos foram obrigados a sair depois que se casaram e começaram suas próprias famílias.

“Você pensa que todo mundo tem um quarto?”,  ri Ebtahaj quando pergunto onde dormem os outros familiares. A resposta é: amontoados, nos sofás da sala que se tornam camas quando anoitece.

Mesmo assim, a casa dos Najib é espaçosa, comparada a muitas do setor muçulmano. A luz entra por grandes janelas em uma sala de estar de pé-direito alto, cujas paredes são enfeitadas por retratos dos anos 1950 do pai de Youssef com bigode e a mãe glamourosa, de batom. Do lado de fora da sala pouco mobiliada, um balcão dá para lojas e cafés — o melhor “homus” feito na Cidade Velha, no Abu Shukri, fica quase embaixo.

Imediatamente acima do balcão, cinco grandes bandeiras israelenses pendem do segundo andar. Para os passantes, esses símbolos do Estado judaico, juntamente com o sinal hebraico sobre a entrada em arco que anuncia a Sinagoga da União dos Combatentes de Jerusalém na Cidade Velha, mandam uma clara mensagem: este prédio está nas mãos de judeus. A presença da família Najib torna-se quase invisível.

Nos últimos 30 anos, uma “yeshiva” – escola de estudos religiosos – funcionou nos andares acima da casa dos Najib. Segundo estes, os estudantes, professores e a segurança armada 24 horas fazem barulho, jogam lixo na escada e intimidam as crianças. “A todo minuto – meio-dia, meia-noite, de manhã e à tarde – eles cantam, rezam, tocam música, batem portas, sobem e descem a escada. Mas nunca falam conosco”, diz Youssef.

Ninguém da yeshiva se dispõe a falar com o Observer, tampouco. Quando saio da casa dos Najib, sob o olhar atento de um segurança estacionado em uma guarita quase em frente à porta da família, um grupo desce a escada. Eu lhes peço para ouvir seu lado da história, mas eles passam depressa, sem olhar. Daniel Luria, porta-voz da Ateret Cohanim, a organização por trás da yeshiva, me diz mais tarde que nenhum dos colonos – termo que ele rejeita – do setor muçulmano aceitará ser entrevistado. “Nunca é vantajoso. Somos sempre vistos como os ocupantes – os palestinos são sempre considerados os residentes”, ele diz.

Segundo o site na web da Ateret Cohanim, ateret.org.il, a yeshiva é o “epicentro espiritual de uma comunidade de quase mil moradores no centro da Cidade Velha, no chamado setor muçulmano”. Hoje eles se referem à área como o “Setor Judaico Renovado”.

Mas a Ateret Cohanim é muito mais que uma promotora de estudos religiosos. Dedica-se a ajudar os judeus a comprar propriedades de árabes na Cidade Velha e em Jerusalém Oriental, promovendo o que Luria chama de “redenção física e espiritual” da cidade. A Ateret Cohanim ajudou na compra de pelo menos 50 propriedades no setor muçulmano e pretende aumentar esse número.

A história complexa e violenta desta cidade já encheu inúmeros livros. Não se discute que os judeus foram seus primeiros habitantes, mas a presença de muçulmanos e cristãos também remonta a muitos séculos.

Mais recentemente, no final da guerra após a declaração do Estado de Israel em 1948, Jerusalém foi dividida, e a Cidade Velha ficou no lado oriental, controlado pela Jordânia, da linha do armistício, conhecida como Linha Verde. A população judia no interior das antigas muralhas de pedra caiu a zero.

Dezenove anos depois, Israel capturou Jerusalém Oriental na Guerra dos Seis Dias em 1967, “libertando” – em sua terminologia – a Cidade Velha. Os judeus voltaram a viver perto do local reverenciado do Muro das Lamentações e Israel declarou a cidade de Jerusalém, “reunificada e indivisível”, sua “eterna” capital. A anexação de Jerusalém Oriental por Israel nunca foi reconhecida pela comunidade internacional. Os palestinos querem que Jerusalém Oriental, dominada pelos árabes, seja a capital de um futuro Estado, mas Israel está decidido a resistir a qualquer divisão ou compartilhamento da cidade; daí a política estatal de estabelecer “bairros” judeus – assentamentos, para o resto do mundo – em áreas que cruzam a Linha Verde pré-1967. Alguns desses assentamentos são grandes bairros que abrigam milhares de israelenses judeus em blocos de apartamentos modernos. Outros são pequenos bolsões de radicais no centro de comunidades palestinas, onde a presença de colonos e seus guardas de segurança causa fricção e animosidade.

Com poucas perspectivas à vista de um acordo de paz que envolva uma Jerusalém compartilhada, a Ateret Cohanim, um dos principais promotores dos bolsões de colonos de motivação religiosa, está aumentando e consolidando a presença judaica nos setores muçulmano, cristão e armênio da Cidade Velha. Segundo Luria, a organização “facilita aquisições”, mas não compra propriedades ela mesma. Isto é discutido por seus críticos. Dizem que ela dirige uma rede de empresas de fachada na tentativa de disfarçar seu envolvimento nas aquisições.

Um relatório, “Jerusalém, a Cidade Velha”, publicado em 2009 pelo Centro Internacional de Paz e Cooperação (IPCC na sigla em inglês) – uma organização da sociedade civil palestina –, disse que a Ateret Cohanim está “assumindo a liderança no processo de judaização da Cidade Velha”. As propriedades foram adquiridas por três métodos diferentes, ela disse: reivindicando a propriedade histórica judaica e conseguindo uma ordem judicial para despejar moradores palestinos; ocupando “propriedades vagas”; ou usando transações escusas, em que a identidade do comprador é ocultada.

Luria nega que a Ateret Cohanim use empresas de fachada, mas admite que os compradores às vezes usam intermediários palestinos. “A lei árabe diz que um árabe deve ser morto se vender propriedade para um judeu”, diz ele. “É uma desgraça em um país moderno e democrático, mas os árabes às vezes têm de ser protegidos. Eles não podem ser abertamente uma parte da venda em certas circunstâncias. Por isso intermediários árabes são usados às vezes, e se fazem contornos legais. Não em todos os negócios, mas quando necessário.”

Os alvos atuais da organização incluem propriedades perto da Porta de Herodes, um centro comunitário palestino perto da Porta do Leão e casas próximas ao Pequeno Muro das Lamentações, logo abaixo do Haram al-Sharif, ou Monte do Templo, segundo ativistas palestinos.

“Esta é a pátria do povo judeu. Por que não deveríamos voltar – especialmente quando estamos pagando um bom dinheiro?”, diz Luria. “Não estamos expulsando as pessoas. Os judeus devem poder comprar aqui, como em Londres ou Nova York. Nós somos um povo indígena desta terra.” Ele acrescenta: “Os árabes são ocupantes ilegais desta terra”. Se um árabe se sente “desconfortável” com judeus morando no setor muçulmano, “é uma pena. Mas se ele não gosta não faltam outros países com maiorias muçulmanas. Se eles não podem nos aceitar, é problema deles. Por que eu deveria pedir desculpas ou me sentir mal?”

Apesar de serem prolixos sobre os direitos dos judeus à terra, Luria é reticente sobre o financiamento da Ateret Cohanim. Eu lhe pergunto se Irving Moskowitz, um octogenário magnata dos bingos dos Estados Unidos cuja fundação homônima financia atividades de colonos em Jerusalém Oriental, e que é amplamente relatado como doador de milhões de dólares para a Ateret Cohanim, é um de seus apoiadores. “Recebemos doações daqui e do exterior, mas não mencionamos qualquer indivíduo que apoie a organização”, é tudo o que Luria aceita dizer. O apoio também vem do Estado de Israel, pelo menos na forma de segurança para os colonos.

A poucos metros da casa dos Najib, no cruzamento da rua El-Wad com a Via Dolorosa, a polícia de fronteira israelense mantém uma presença diária, habitualmente pedindo para ver documentos dos palestinos e perguntando onde eles moram e para onde vão. “Eles nunca param os judeus”, diz Youssef Najib. “Estão aqui para ajudar os judeus.”

Enquanto isso, nos becos estreitos e nos pátios escondidos do setor muçulmano, a vida cotidiana piora pouco a pouco. Nos últimos 30 anos sua população duplicou, exacerbando níveis já altos de superpopulação e pobreza. Um relatório sobre a economia palestina publicado no início deste ano pela ONU disse que a densidade habitacional no setor muçulmano é quase o triplo da do setor judeu. Muitos lares palestinos não têm água corrente ou um sistema de esgoto adequado. Mais de 80% das moradias exigem uma grande reforma ou manutenção urgente, segundo o IPCC.

Três de cada quatro crianças no setor muçulmano vivem abaixo do limite de pobreza e o desemprego ultrapassa 30%. A coleta de lixo é esporádica nessas ruas laterais, e quase não há espaços abertos para as crianças brincarem. O uso de trabalho infantil é generalizado; os índices de abandono escolar são altos. A violência doméstica e o abuso de drogas estão crescendo.

Um dos principais motivos para a migração para a Cidade Velha é uma exigência israelense de que os palestinos provem que Jerusalém é seu “centro vital” para que possam manter seus valiosos direitos de residência na cidade, dando maior acesso a empregos, educação e saúde. Mais de 7 mil palestinos tiveram o direito de residência em Jerusalém revogado entre 2006 e 2011; diante dessa ameaça, outros milhares se mudaram dos subúrbios e aldeias próximos a Jerusalém de volta para a cidade – incluindo a Cidade Velha – para conseguir seus papéis de identidade. Outros, que se viram isolados do centro da cidade pelo enorme muro de concreto, mudaram-se para a Cidade Velha para evitar passar diariamente pelos postos de controle.

Além disso, segundo a ONU, os palestinos na Cidade Velha estão “apanhados entre as linhas de frente da interação com colonos e autoridades israelenses em uma base diária e as linhas de frente da luta para preservar e afirmar a identidade cultural e política palestina e suas raízes islâmicas e cristãs. Isto provocou uma crescente sensação de sítio e conflito para os residentes palestinos nativos, que consideram seus estilos de vida, sobrevivência e coesão social em risco no clima de discórdia que reina na Cidade Velha, com o fervor religioso facilmente degenerando em tensões comunitárias”.

Luria rejeita essa imagem. “As famílias judias estão vivendo na Cidade Velha lado a lado com os árabes, em alguns casos até no mesmo quintal. Está bem, não é necessariamente um amor lindo, mas é coexistência básica, que é o melhor que se pode esperar em um lugar tão vulcânico quanto Jerusalém. Infelizmente, alguns árabes não se resignam a ter judeus vivendo ao seu lado – árabes que em geral têm um problema de viver em uma pátria nacional judaica. Mas a terra de Israel pertence ao povo judeu.”

Na casa da rua El-Wad — sob as bandeiras israelenses esvoaçantes, juntamente com os guardas de segurança armada e policiais israelenses, e onde o som dos “muezzin” da mesquita do outro lado da rua às vezes compete com o canto das orações judaicas na yeshiva no andar de cima – Youssef Najib encolhe os ombros quando lhe pergunto se acha que os judeus vieram para ficar no setor muçulmano.

“Eles nem sequer nos dão a Cisjordânia como Estado, então você acha que darão Jerusalém Oriental de volta?”, diz. Mas ele criou sua linha de frente pessoal na batalha pela Cidade Velha. Muitas vezes colonos bateram à porta dos Najib e ofereceram dinheiro à família para deixar a propriedade. Mas Youssef diz: “Se você me der toda a riqueza de Israel, eu não lhe darei minha casa”.

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