Mundo
A mentira vence
Uma campanha de desinformação reescreve a história e leva a família Marcos de volta ao poder nas Filipinas


Ferdinand Marcos, o ditador que governou as Filipinas de 1965 a 1986, foi o herói mais condecorado do país na Segunda Guerra Mundial. Sob seu governo, as Forças Armadas eram as mais avançadas da Ásia. Ainda mais impressionante: sua família possui enormes quantidades de ouro, o suficiente para salvar o mundo (foi dado a Marcos por uma família real como pagamento por atuar como seu advogado). Será compartilhado com a população se eles recuperarem o poder.
As afirmações são todas falsas. Mas isso não impediu que repercutissem nas redes sociais e saturasse os feeds de notícias nas Filipinas. Ferdinand Marcos deixou o cargo em desgraça há 36 anos, deposto pela Revolução do Poder Popular, que atraiu milhões para as ruas e forçou a família a fugir do palácio presidencial de helicóptero. Mas, no último domingo 8, a família Marcos marcou sua volta ao poder. Cerca de 67,5 milhões de filipinos foram às urnas para decidir quem substituiria o presidente populista Rodrigo Duterte, que chegou ao fim de seu mandato de seis anos e não podia concorrer novamente. O único filho de Marcos, Ferdinand Marcos Jr., conhecido como Bongbong, confirmou o favoritismo e obteve mais do dobro dos votos da concorrente, Leni Robredo, ex-advogada de direitos humanos e atual vice-presidente.
Analistas descreveram a corrida como uma luta pela verdade e o ápice de uma campanha de décadas para reescrever a história e reabilitar o nome Marcos. A eleição não foi disputada apenas com dados e evidências, disse Ronald Mendoza, reitor da Escola de Governança Ateneo, em Manila: “É uma batalha de desinformação”.
Os Marcos e seus apoiadores tentam revisar a história de sua época e da lei marcial imposta em 1972, muitas vezes descrita como um dos episódios mais dolorosos do país. Eles negam ou descartam a tortura generalizada documentada por grupos de direitos humanos, as execuções extrajudiciais e o roubo de bilhões de dólares. Em vez disso, o período é retratado como uma era dourada de paz e prosperidade.
Para os sobreviventes do regime de Marcos, a aceitação de tais relatos por parcelas significativas do público é incompreensível. “Se ele vencer, será com base em narrativas falsas e distorção histórica”, disse Bonifácio Ilagan, coordenador da Campanha Contra o Retorno dos Marcos e da Lei Marcial, antes do anúncio do resultado oficial. “Vivi a ditadura militar. Fui preso duas vezes. Fui torturado. Minha irmã desapareceu e provavelmente foi morta, amigos sofreram o mesmo. E agora o Marcos Jr. volta. É horrível, parece um pesadelo.”
A violência da ditadura e a corrupção generalizada foram apagadas. Ferdinand Jr. vence as eleições
Parcerias foram formadas para combater falsas afirmações online, entre elas o #FactsFirstPH, formada por meios de comunicação como Rappler, cofundado pela ganhadora do Nobel Maria Ressa, que se uniu a grupos religiosos, pesquisadores e outros. O Tsek.ph, uma coalizão de universidades, jornalistas e grupos da sociedade civil, também corrige falsas teses nas redes sociais. “Todos os dias vasculhamos esse tsunami de desinformação e decidimos quais checar. São muitas”, diz Maria Diosa Labist, professora associada do Departamento de Jornalismo da Universidade das Filipinas e coordenadora da iniciativa.
O Tsek.ph tem uma linha de denúncias na qual o público pode relatar postagens questionáveis, enquanto os pesquisadores vasculham as redes sociais em busca de desinformação viral. Sua análise mostra que tanto Robredo quanto Marcos foram alvo de falsas afirmações. Mas a desinformação sobre Robredo tem sido extremamente negativa, questionando sua competência e seu caráter. Das falsas alegações sobre Marcos, quase todas buscavam melhorar sua imagem ou aquela de sua família. Muitas se relacionam à época de seu pai: afirmavam erroneamente que nenhum crítico de Marcos foi preso durante a lei marcial, ou que todos os casos de riqueza ilícita contra a família foram arquivados.
No TikTok e no YouTube, contas alinhadas a Marcos buscam glamourizar a dinastia, com montagens de imagens de arquivo e clipes de seus filhos adorados por uma base de apoiadores mais jovens. “O próprio Marcos Jr., sua carreira política e suas realizações não são realmente impressionantes”, disse Fátima Gaw, professora assistente de pesquisa em comunicação na Faculdade de Comunicação de Massa da Universidade das Filipinas. Seu apelo depende de sua promessa de restaurar o legado do pai, que é o centro das campanhas online.
Em um recente show para Marcos em Bulacan, o clima era nostálgico. A multidão, vestida de vermelho, cantou músicas de rock dos anos 1970 e 80. Os participantes falaram com carinho do passado. “O pai dele fez muitas coisas. Ele construiu estradas, pontes, hospitais”, disse Zenaida Catindig, 59 anos. Catindig não acredita que a família Marcos tenha roubado dinheiro das Filipinas. “Se há um caso, eles deveriam estar na cadeia agora. Eles não estão na prisão. Por que estão livres, se são corruptos?”
A família enfrentou várias denúncias. A mãe de Marcos Jr., Imelda, famosa por sua coleção de 3 mil pares de sapatos, apela de uma condenação criminal de 2018 por sete acusações de corrupção.
Névoa. A revolução que derrubou a família Marcos do poder resta na lembrança de poucos filipinos. Muitos acreditam que a dinastia trouxe prosperidade ao país – Imagem: iStockphoto e Jam Santa Rosa/AFP
John Agbayani, presidente da Comissão Presidencial de Bom Governo, criada para investigar e recuperar os fundos da família Marcos, disse à Reuters que havia recuperado cerca de 5 bilhões de dólares (em torno de 25 bilhões de reais) e que outros 2,4 bilhões estavam presos em litígios. Mais dinheiro continua sumido. Apesar dessas evidências, os apoiadores não estão convencidos. “A família Marcos era rica antes de entrar na política”, disse Catherine Dayao, estudante de 22 anos que assistia ao show em Bulacan. Marcos foi advogado de uma família real, disse. Foi seu irmão, um professor de história, quem lhe contou. “Vejo nele as qualidades de meu pai”, disse Dayao. “Bongbong trará de volta a disciplina aos filipinos.”
Segundo analistas, grande número de eleitores mais jovens nas Filipinas não se lembra da lei marcial. “Há exposição à desinformação mesmo em idades muito jovens”, afirma Mendoza. “Eles parecem ter plantado as sementes para o sucesso futuro.” Garantir que haja informações factualmente precisas sobre a era Marcos deve se tornar cada vez mais crucial mesmo para futuras eleições, acrescenta.
Os filipinos estão no topo das pesquisas globais de tempo gasto nas redes sociais, o que aumenta a vulnerabilidade do país à desinformação. As plataformas de rede social foram manipuladas pelo presidente Duterte enquanto fazia campanha para as eleições de 2016 e usadas como arma para calar as críticas ao seu governo. Um funcionário do Facebook descreveu o país como “paciente zero” em uma crise de notícias falsas que cresceu para ameaçar democracias em todo o mundo.
Pesquisadores dizem, no entanto, que o que aconteceu nas eleições é muito mais organizado e insidioso do que as fazendas de trolls de Duterte. Em 2016, as Filipinas experimentavam apenas a infância das campanhas de desinformação, disse Gaw. “Seis anos depois, vemos que há toda uma cadeia de oferta que realiza esse trabalho para os Marcos.” Se uma crítica a Marcos Jr. for divulgada na mídia, uma contranarrativa é rapidamente fornecida por uma rede de influenciadores online, disse Gaw, que descreve o sistema como muito mais industrializado.
Provar que essas contas são financiadas pela família Marcos ou determinar o tamanho do negócio de desinformação é um desafio. Mas está claro que espalhar desinformação é um trabalho fácil e compensa, acrescenta a especialista. “É tão lucrativo que, mesmo que você não acredite no Marcos Jr., você o promoveria.”
O presidente eleito negou a existência de qualquer campanha de desinformação organizada. Em janeiro, o Twitter suspendeu, porém, centenas de contas que promoviam sua campanha por violar suas regras sobre spams e manipulação.
Cerca de 5 bilhões de dólares desviados por Ferdinand e Imelda foram recuperados, uma fração dos desvios
Pesquisadores nas Filipinas há muito acusam as empresas de rede social de não levarem a sério a desinformação online e permitirem que suas plataformas sejam exploradas. Embora os filipinos estejam entre os usuários mais dedicados no mundo, as plataformas têm políticas de moderação projetadas com uma perspectiva ocidental, priorizando áreas como conteúdo de alt-right (direita alternativa), disse Gaw. “Nas Filipinas não há uma versão alt-right das coisas. São apenas diferentes famílias políticas a lutar pelo poder.”
O Tsek.ph não tem um acordo especial com plataformas para remover conteúdo falso, embora alguns integrantes sejam credenciados como checadores de fatos terceirizados para o Facebook. Das postagens que a coalizão Tsek.ph denuncia, não sabe quantas são removidas. As histórias geralmente reaparecem e se movem entre diferentes sites de rede social. Muitas vezes, as reivindicações circulam há anos e se enraízam em algumas comunidades online. Tentar contrariar tais crenças, em um país onde a mídia foi difamada, ameaçada e assediada, é uma batalha ingrata.
Ilagan teme que a eleição de Marcos Jr. cerceie as liberdades e arruíne os esforços para recuperar a riqueza ilícita da família. Também distorcerá ainda mais a democracia. “Acho que os Marcos planejaram tudo desde que foram expulsos do palácio presidencial. Eles tiveram todo o tempo e o dinheiro para elaborar um retorno. Como a democracia pode ser verdadeira quando um punhado decide o destino da maioria?”, indagou. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1208 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A mentira vence”
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