Mundo
A mediocridade como meta
No país da crise política infinita, Pedro Castillo é cada vez mais refém do Congresso e do poder econômico


Na manhã da quinta-feira 4, a agenda do presidente do Peru marcava um compromisso protocolar para dali a três dias. No domingo, Pedro Castillo iria a Bogotá para a cerimônia de posse de Gustavo Petro na presidência da Colômbia. No fim da tarde, aconteceria algo inédito na história do país: o Congresso, sem maiores justificativas, negaria o curto afastamento. “Uma vergonha”, classificou o mandatário ao saber da medida.
O jogo de miudezas, chantagens e grandes interesses entre os três poderes da República transformou o primeiro ano do governo de Castillo, comemorado em 28 de julho, numa sequência de imprevistos e súbitas mudanças de rota. Na conta entram sua total inaptidão para o cargo, admitida por ele em entrevista recente, e a incapacidade de articular uma gestão minimamente coerente e estável.
A reprovação ao governo chegou a 76% em abril último, segundo sondagens do Instituto Ipsos. É verdade que os indicadores melhoraram dois meses depois: em junho, a marca descera para 70%. O Congresso, que tem poderes para destituir o presidente, enfrenta situação pior, com 75% de avaliações negativas. O paradoxo faz com que apenas 42% da população apoie um processo de impeachment, o que pode evitar a terceira tentativa de destituição que tramita entre os parlamentares. A causa principal dos descontentamentos é a situação econômica. Apesar de um crescimento do PIB da ordem de 3, 8% nos últimos 12 meses, a pesquisa indica que 73% dos eleitores viram a situação piorar no mesmo período e 52% acham que as coisas tendem a se agravar. A inflação passa dos 8% ao ano, alta para a média histórica. Em uma economia pautada pela exportação de commodities e centrada no extrativismo mineral, os bônus do crescimento dificilmente se distribuem pela sociedade.
Castillo tem pouco a apresentar como realizações de governo. Além do Congresso e de uma imprensa hostil, o ex-professor rural não consegue concretizar as principais promessas de campanha. O envio de um projeto de consulta popular ao Legislativo com vistas à convocação de uma Assembleia Constituinte, em abril deste ano, foi arquivado no mês seguinte. O governo vive permanentemente aos sobressaltos e o improviso é a marca maior da administração. No dia 3 de agosto, Aníbal Torres, presidente do conselho de ministros, o quarto desde o início do mandato, comunicou sua renúncia ao cargo, por “motivos pessoais”. Apesar de mais seis ministros terem saído, o presidente não aceitou a demissão de Torres e tenta ganhar tempo até encontrar um substituto com respaldo parlamentar. O titular do Interior foi trocado sete vezes desde julho do ano passado. No total, houve 57 alterações, num gabinete de 19 pastas. Classificado como um radical de esquerda na campanha, sua localização no espectro político agora oscila ao sabor das negociações parlamentares.
Errático, o presidente só persegue um objetivo: evitar o impeachment antes do fim do mandato
Em 6 de agosto, Castillo denunciou as articulações contra ele como “golpistas”. A afirmação não é infundada. As facilidades para a destituição de um chefe de Estado e de ministros são, no entanto, consagradas numa Constituição que dá enormes poderes ao Congresso e ao Ministério Público. A Carta não define claramente o tipo de regime vigente, mas vigora uma espécie de parlamentarismo não declarado.
Na mensagem à Nação, discurso de quase duas horas pronunciado no Congresso no aniversário do mandato, Castillo fez um laudatório balanço de seus 12 meses no cargo e acusou os meios de comunicação de manter a população desinformada e de trabalhar por sua queda. Em sua visão, o país cresce, a pobreza se reduz, os serviços públicos se ampliam e as denúncias de corrupção são feitas “sem prova alguma”. O anúncio da entrada do país na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é apresentado como grande feito da diplomacia nacional.
A ziguezagueante conduta presidencial levou o seu partido, o Peru Livre, a romper com o governo, no fim de junho. Com a maior bancada individual no Congresso – 37 assentos numa assembleia unicameral de 130 congressistas –, a agremiação manifestou-se duramente: “Destacamos que as políticas empreendidas pelo seu governo não têm consequência com o que foi prometido durante a campanha eleitoral e menos ainda com o programa partidário, implementando um programa neoliberal que saiu perdedor”.
Apesar do rumo incerto, é possível estabelecer um corte geral entre apoiadores e opositores. O ex-professor conta ainda com razoável respaldo entre setores populares e de esquerda, que veem sua possível destituição como um retrocesso. Tentando minorar a crise social, o governo lançou uma série de bônus para famílias vulneráveis, ao mesmo tempo que manifesta apoio a agendas conservadoras, como um projeto de lei que faculta às famílias a aprovação prévia dos currículos escolares das escolas. As organizações opositoras são orientadas pelo conservadorismo de direita. Mas o corte é gelatinoso. Entidades de direitos humanos deploram as visões retrógradas do dirigente, em especial em temas como direitos sexuais e ao aborto.
Castillo é o quinto peruano que chega ao poder desde 2016. Pedro Pablo Kuczynski renunciou antes de completar dois anos de mandato, diante do escândalo de corrupção a envolver a atuação da Odebrecht no país. Seu vice, Martyin Vizcarra, permaneceu no cargo por um ano e meio até cair em polêmica votação legislativa, em novembro de 2020, também sob acusações de corrupção. O então presidente do Congresso, Manuel Merino, assumiu a função por cinco dias e renunciou diante de uma crescente onda de protestos de rua. Um novo presidente do Legislativo, Francisco Sagasti, completou os oito meses restantes do mandato presidencial, até as eleições de 2021. Nesse meio-tempo, Alan Garcia, presidente por duas vezes, se suicidou pouco antes de ser preso por acusações de corrupção, em abril de 2019, e Alejandro Toledo, que exerceu o mandato entre 2001 e 2006, encontra-se encarcerado nos Estados Unidos, também por acusações de corrupção. O ex-secretário-geral da presidência atual, Bruno Pacheco, entregou-se à Justiça, após permanecer três meses foragido diante da acusação de vários crimes de corrupção.
Premido pela própria inépcia e falta de capacidade política e pelo pesado jogo da direita, a meta maior de Castillo é sobreviver no poder até 2026. À frente de uma gestão medíocre, na melhor das hipóteses. •
*Professor de Relações Internacionais da UFABC e coordenador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (Opeb).
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1221 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A mediocridade como meta “
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