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A mando de quem?
A canhestra tentativa de golpe expõe as lutas intestinas pelo poder
Não foi um arremedo de golpe ao estilo “um cabo e um soldado”, mas quase. Depois de posicionar dois tanques e alguns soldados na Plaza Murillo, no coração da capital La Paz, o general Juan José Zúñiga usou um blindado para forçar a entrada no palácio do governo. Caminhou poucos metros até se deparar com o presidente Luis Arce, que instantes antes havia denunciado “manobras irregulares do Exército” e conclamado a população a resistir a uma eventual tentativa de golpe. Com o dedo em riste, o mandatário exigiu o fim do cerco. “Sou seu comandante e ordeno que retire seus soldados, não permitirei essa insubordinação.” Afastado do comando do Exército no dia anterior, Zúñiga não atendeu ao ultimato imediatamente, tampouco ousou apontar fuzis contra o presidente. Só bateu em retirada horas depois, quando o novo comandante, Sánchez Velásquez, nomeado no calor dos acontecimentos, pediu ao insubordinado para evitar um “derramamento de sangue” de colegas de farda.
A surreal quartelada durou poucas horas. A compreensão dos fatos continua, porém, nebulosa. O cerco mambembe ao palácio foi o ápice da escalada retórica de Zúñiga. Apelidado de “general do povo”, pela proximidade com sindicatos e trabalhadores da mineração, o militar incumbiu-se da missão de salvar a democracia e libertar os “presos políticos”, em outras palavras, os golpistas de 2019 condenados pela Justiça. “Vamos recuperar esta pátria”, declarou durante o bloqueio à Plaza Murillo. “Aqui estão as forças armadas com sua gente. Donos do Estado, os vândalos estão nas diferentes estruturas, destruindo o país.” Preso ao cair da noite, o general lançou uma suspeita em relação a Arce. Tudo não passaria de um autogolpe, acusou. “No domingo, na Escola La Salle, me encontrei com o presidente e o presidente me disse que ‘a situação está muito complicada, esta semana vai ser crítica. Portanto, é necessário preparar algo para aumentar a minha popularidade’.”
A acusação parece estapafúrdia, mas tem sido alimentada pela oposição à esquerda, enredada em uma disputa fratricida. Eleito com o apoio de Evo Morales, Arce voltou-se contra o criador. Ao anunciar a intenção de disputar a reeleição, foi acusado de deslealdade ao antigo padrinho político, que tem planos de concorrer ao terceiro mandato presidencial, possibilidade vedada pela Constituição de 2009. A crescente rivalidade entre os dois rachou o Movimento ao Socialismo (MAS), maior partido do país. Aliados de Morales no Congresso passaram a boicotar os projetos do governo, incluídos aqueles destinados a reerguer a economia, abalada pela escassez de combustíveis, falta de dólares e queda nas exportações. A redução nos investimentos em infraestrutura tem obrigado a Bolívia a importar bens que antes produzia para abastecer o mercado doméstico ou até fornecia a outros países, casos da gasolina, diesel e gás de cozinha. Por escassez de divisas, a moeda local, o boliviano, sofreu forte desvalorização perante o dólar, levando a uma corrida bancária e cambial. A despeito do cenário adverso, há leves sinais de melhora. No ano passado, o PIB cresceu 3%.
O general Zúñiga é um lobo solitário ou integra uma trama maior?
O episódio provocou, no entanto, uma inesperada união de forças. Para angariar simpatia, Zúñiga prometeu a libertação de Jeanine Áñez e Luis Fernando Camacho, principais líderes civis do golpe de 2019. Se esperava contar com o apoio da oposição, deu com as lhamas n’água. “Repudio completamente a mobilização militar que tenta subverter a ordem constitucional. Arce e Evo devem ser removidos por meio do voto em 2025. Nós, bolivianos, defenderemos a democracia”, escreveu Áñez nas redes sociais. “Devemos respeitar o voto popular e qualquer ação contra ele é ilegal e inconstitucional”, acrescentou Camacho, ex-governador da província de Santa Cruz.
A reação da comunidade internacional ao cerco militar também foi rápida. O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, rechaçou o golpe e convidou “todo o povo boliviano à resistência democrática”. Os EUA disseram “monitorar de perto” a situação e pediram “calma e contenção”. O primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, condenou “qualquer tentativa de romper a ordem constitucional”. Luis Lacalle-Pou, o liberal presidente do Uruguai, disse condenar “energicamente” a quartelada e expressou “solidariedade ao governo legítimo” de Arce. O outrora golpista Luis Almagro, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, desta vez defendeu a legalidade. A OEA “não tolerará qualquer forma de quebra da ordem constitucional legítima na Bolívia, nem em qualquer outro lugar”. A líder hondurenha Xiomara Castro, presidente temporária da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, conhecida pela sigla Celac, convocou uma reunião “emergencial” para discutir o “golpe de Estado”. Lula, por sua vez, usou as redes sociais para repudiar a intentona: “A posição do Brasil é clara. Sou um amante da democracia e quero que ela prevaleça em toda a América Latina. Condenamos qualquer forma de golpe de Estado na Bolívia e reafirmamos nosso compromisso com o povo e a democracia no país irmão”.
Zúñiga contou com o auxílio do comandante da Marinha, Juan Arnez Salvador, também preso na noite da quarta-feira 26. “Os dois conspiradores golpistas militares tentaram destruir a democracia e as instituições e falharam”, afirmou o ministro de Governo, Eduardo del Castillo. A população tomou as ruas de La Paz em defesa da democracia e Arce, tudo indica, sai fortalecido do episódio. Ao menos por enquanto. •
Publicado na edição n° 1317 de CartaCapital, em 03 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A mando de quem?’
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