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A indústria das cúpulas

Grandes eventos ambientais como a COP30 produzem poucos resultados, afirma Vinícius Lindoso

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Controle. Empresas privadas passaram a dominar os palcos dos eventos de “forma crescente e preocupante”. Quem não pode pagar, acaba silenciado – Imagem: Alessandra Benedict/FAO/UNOC 3
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A COP30, marcada para novembro em Belém do Pará, é parte de uma “indústria de cúpulas” que ­custam caro, consomem muito tempo e produzem poucos resultados concretos, critica Vinícius Lindoso, por uma década funcionário da Unesco em Paris. Segundo o brasileiro formado em Relações Internacionais em Yale e mestre em Políticas Públicas por Oxford, o modelo atual de conferências virou uma “engrenagem autônoma, onde muito se fala e pouco se faz”.

CartaCapital: O que seria a “indústria de cúpulas”?
Vinícius Lindoso: É um ecossistema inflado de conferências ambientais internacionais que se multiplicam ano após ano, sejam organizadas pela ONU, sejam por governos ou por entidades privadas. São dezenas de encontros anuais, como as COPs do Clima e da Biodiversidade, a Our Ocean Conference, e fóruns corporativos como o World Ocean Summit­ de The ­Economist. Todos prometem diálogo e soluções, mas consomem enormes recursos públicos, tempo de especialistas e atenção da mídia, com poucos resultados concretos. Essa indústria opera sem avaliação real de impacto. Só em 2024, houve ao menos dez grandes conferências globais sobre clima, oceano e biodiversidade, ocupando quase 60 dias úteis de milhares de profissionais, que, em tese, deveriam estar concentrados em resolver as crises que discutem, não apenas debatendo, viajando e produzindo mais emissões. Nem mesmo a ONU tem números claros sobre os custos, pois os gastos são fragmentados entre o secretariado, os países anfitriões e patrocínios privados. O modelo atual virou uma engrenagem autônoma, onde muito se fala e pouco se faz.

CC: A COP30 é parte dessa ‘indústria de ­cúpulas’?
VL: Sim. Apesar de seu papel central na diplomacia climática, após 30 anos de negociações, as COPs ainda não entregaram resultados contundentes. As emissões seguem em alta e dificilmente alcançaremos a meta de 1,5°C do Acordo de Paris, que perdeu boa parte de sua credibilidade. A confiança pública também está abalada: em 2024, apenas 9% dos britânicos disseram acreditar que essas cúpulas levam a ações significativas. No caso da COP30, há um desafio adicional: a decisão política de sediá-la em Belém impôs uma complexidade logística imensa. Embora o esforço dos governos para viabilizar o evento seja louvável, o custo será alto e a diversidade, provavelmente limitada. Há risco de repetir o cenário da COP27, no Egito, onde muitos atores do Sul Global ficaram de fora por falta de condições.

CC: São todas iguais?
VL: Apesar das minhas críticas contundentes, é preciso sempre separar o joio do trigo. Não hesito em dizer que muitas conferências, como a Our Ocean ­Conference ou as conferências de “décadas temáticas” da ONU (o Rio de Janeiro acaba de se comprometer em sediar a próxima conferência da Década do Oceano, em 2027), deveriam ser fortemente reduzidas, amalgamadas ou simplesmente descontinuadas. Não possuem legado político ou concreto, logo não farão falta. Já as COPs do clima ou da biodiversidade estão numa categoria à parte e merecem atenção. Trabalho atualmente com cientistas, filantropos e comunidades indígenas e tradicionais para assegurar a participação na COP30, e com jornalistas independentes e escolas para garantir que a conferência não vá se reduzir às atividades em torno de Belém. Que atinja e, principalmente, mobilize os milhões de brasileiros que sentem as consequências das mudanças climáticas em seu dia a dia.

Só espuma. É preciso mudar a arquitetura das conferências, sugere o especialista brasileiro – Imagem: Redes Sociais/Unesco

CC: De que maneira os interesses privados perpassam essas grandes cúpulas?
VL: De forma crescente e preocupante. Um exemplo foi a Conferência da ONU Sobre o Oceano, em junho, em Nice. Embora financiada majoritariamente com recursos públicos, a participação da sociedade civil foi terceirizada e comercializada. Um pavilhão custava até 150 mil euros (cerca de 900 mil reais), apenas pelo espaço físico, fora os custos de produção e equipe. Na prática, só participou quem pôde pagar. Mais grave ainda é o risco de captura do discurso. No caso da COP30, sabe-se que a cobertura midiática está sendo financiada por grandes players do agronegócio e da indústria, como JBS, Hydro e Vale. Esse modelo gera um ambiente desigual: organizações com acesso a grandes financiadores dominam os espaços, enquanto atores locais, indígenas, cientistas independentes e jovens ficam à margem, quando conseguem estar presentes. O que deveria ser um espaço democrático vira uma feira corporativa, muitas vezes bancada indiretamente com dinheiro público, pois os próprios órgãos públicos e agências da ONU pagam para ter visibilidade. O setor privado pode e deve contribuir, mas no financiamento das soluções, não no controle dos palcos.

CC: Como ampliar a participação e afunilar os resultados ao mesmo tempo?
VL: As cúpulas não produzem resultados concretos justamente por excluírem os grupos mais afetados pelas mudanças climáticas. Quando as vozes de comunidades indígenas, jovens ativistas, cientistas independentes e representantes do Sul Global ficam restritas a zonas periféricas, como a chamada “Zona Verde” nas COPs, perde-se legitimidade, ambição e senso de urgência. A solução não está apenas em “incluir mais gente”, mas em redesenhar a arquitetura das conferências. A distinção entre “Zona Azul” (onde os governos decidem) e “Zona Verde” (onde a sociedade civil observa) precisa acabar. Precisamos de mesas fundidas, onde todos estejam presentes no debate, mesmo que a decisão final siga nas mãos dos Estados. Isso exigirá coragem para mexer em formatos consolidados. Talvez as futuras COPs precisem ser mais curtas, com dias reservados exclusivamente a negociações oficiais entre os países, e outros dias abertos à sociedade civil, ao setor privado e à ciência, de forma integrada e deliberativa.

CC: O senhor passou dez anos trabalhando no sistema das Nações Unidas, com temas ambientais. Qual a visão que se tem de dentro?
VL: É uma engrenagem altamente profissionalizada, com gente competente e comprometida, mas presa a um modelo que se repete sem avaliação crítica real. A “indústria das cúpulas” gira com uma série de justificativas ditas e não ditas. A justificativa “dita” é de que esses encontros são essenciais para enfrentar os desafios coletivos do planeta. A “não dita” é que essas cúpulas servem de ferramentas de mobilização de recursos extraorçamentários para muitas agências, além de servirem de alavancas de visibilidade institucional, não com os cidadãos, mas com políticos e tomadores de decisão. A verdade incômoda é que, sem transformação estrutural, essas conferências continuarão a servir mais aos seus formatos do que aos seus objetivos. Apesar de não fazer parte das reuniões internas, na ONU muitos sabem disso. Mas mudar o sistema exige mexer com estruturas de poder, contratos, carreiras. E isso, infelizmente, é o que mais se evita. •

Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital, em 16 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A indústria das cúpulas’

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