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A geração inesperada da Polônia lidera ressurgimento da cultura judaica

Um museu importante de Varsóvia dedicado à história do judaísmo na Polônia é um passo significativo para abordar o Holocausto — e a versão atual do antissemitismo

Garoto segura uma vela durante cerimônia que lembrou os 70 anos do levante do Gueto de Varsóvia. Foto: Janek Skarzynski / AFP
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Foi só depois da morte de sua avó que Maniucha Bikont descobriu toda a extensão de seu segredo. Lea Horovitz tinha decidido escapar da prisão no gueto judeu de Varsóvia em 1940, depois de ouvir duas lojistas comentarem “Ela não parece uma zduva”, ao verem a Estrela de Davi em seu casaco.

“Naquele momento Lea percebeu que devia remover seu distintivo e comprar uma nova identidade”, diz Bikont, 26 anos, sentada em um café no centro de Varsóvia enquanto narra a história extraordinária, mas de modo algum única, de sua avó. E foi assim que Lea Horovitz sobreviveu à Varsóvia ocupada pelos nazistas, escondida atrás da personagem improvisada da polonesa Wilhelmina Skulska, que se tornou uma bem-sucedida autora de novelas policiais.

Sua filha Anna — a mãe de Bikont — tinha bem mais de 30 anos quando acidentalmente descobriu a verdade. Mas Wilhelmina, na época bem assimilada e temerosa de mais uma vez ser vítima das diversas campanhas antissemíticas no pós-guerra, se recusou a falar sobre o assunto. E quando se abriu o primeiro jardim de infância judaico em Varsóvia desde a guerra, em 1991, ela reprovou intensamente o fato de que Maniucha estivesse entre as primeiras “admitidas”.

“Ela havia sofrido tanto por ser judia, que eu acho que sentiu que devia fazer tudo para impedir que seus filhos e netos sofressem da mesma maneira. Ela havia passado toda a sua vida escapando da condição de judia”, diz Bikont. “De repente lá estava eu, sua neta, cantando canções judaicas ao voltar do jardim de infância para casa.”

Cerca de 90% dos 3,3 milhões de judeus da Polônia no início da Segunda Guerra Mundial foram mortos. Na década de 1990, segundo Katka Reszke, autora de O Retorno dos Judeus, uma história sobre 50 judeus na Polônia depois do Holocausto, “muitos especialistas previram o fim do judaísmo polonês”.

O fim nunca ocorreu. Em 2002, 1.133 poloneses se identificaram como judeus. Em 2011 esse número saltou para 7.508, embora os especialistas estimem que existam até 20 mil pessoas com raízes judaicas. E na última sexta-feira os poloneses deram mais um passo nas frágeis tentativas para reviver o espírito do que já foi a maior comunidade judaica do mundo, com a inauguração do Museu da História dos Judeus Poloneses.

O reluzente instituto construído no local do antigo gueto e diante do Monumento ao Levante do Gueto de Varsóvia — cujo 70º aniversário também foi comemorado na sexta-feira — tem o potencial para se equiparar ao Yad Vashem e ao Museu Memorial do Holocausto em Washington, em escala e importância.

“Certamente não é o fim”, diz Reszke, 35 anos, que inesperadamente descobriu suas raízes quando tinha 17 anos. “Estamos aqui. Estamos tendo filhos.” Ela chama a nova onda de “geração inesperada”.

Bikont, que é antropóloga da música e viaja pela Europa oriental em busca de antigas músicas folclóricas perdidas — muitas vezes judaicas –, faz parte de uma nova geração inesperada que surgiu na Polônia depois da queda do comunismo, em 1989.

“É uma parte importante da minha identidade, apesar de eu às vezes me sentir muito incomum, sendo uma das poucas pessoas que não foi batizada nesta terra homogênea e majoritariamente católica”, diz ela, sentada no Tel Aviv, um de seus cafés favoritos, no centro de Varsóvia.

Barbara Kirshenblatt-Gimblett, uma etnógrafa nascida em Toronto que é responsável pela exposição permanente da história de quase mil anos dos judeus na Polônia, diz que espera que “faça parte de um itinerário cultural” e “amplie a perspectiva histórica” dos muitos visitantes que vêm à Polônia em busca de seu legado judeu. “A maioria dos grupos organizados, especialmente de jovens, procura o Holocausto e só o Holocausto. O museu tem um papel muito importante em modificar seu itinerário”, ela diz.

Nas ruas de Varsóvia, voluntários distribuíam flores de papel amarelo — propositalmente parecidas com os distintivos com a Estrela de Davi que os moradores do gueto judeu eram obrigados pelos nazistas a usar — para comemorar o aniversário da rebelião. No interior cor de areia, com seus corredores sinuosos e painéis de vidro, dignitários como rabinos e acadêmicos judeus de todo o mundo, assim como os sobreviventes da revolta do gueto em 1943 — em que milhares de moradores se levantaram contra os nazistas em um confronto que durou quase um mês, e um ano depois inspirou o Levante de Varsóvia –, escutavam música clássica e discursos comemorativos em salas que cheiravam a tinta e verniz frescos.

Mas, nos 20 anos que o museu demorou para ficar pronto, grupos menores deram passos na direção do que alguns chamam de renascimento da vida judaica e outros preferem descrever como uma delicada reconexão com ela. Além da reabertura de sinagogas e teatros judaicos, um festival anual em Cracóvia e o festival de teatro Singer em Varsóvia, foram lançadas iniciativas de cidadãos para cuidar dos milhares de cemitérios judeus em todo o país, enquanto coros revivem a música judaica. Tudo isso contribuiu para reformular a antiga imagem da Polônia como um enorme cemitério judeu, o local de todos os campos de extermínio nazistas.

Malgorzata Sledziewska, vice-diretora da escola secundária humanista Jacek Kuron, em Varsóvia, diz que faz parte da iniciativa da escola para “encontrar os fios da história esquecida em um país que sofreu limpeza étnica”, e oferece aos alunos aulas de ídiche. “A procura é grande”, diz.

Na Rua Poznanska, o café Tel Aviv foi inaugurado em 2010. Sua dona, Malka Kafka, que é judia e tem quase 40 anos, diz que o abriu não por um desejo de ser “abertamente judia” e repelir certos mitos de alguns poloneses sobre os judeus com quem eles têm pouco contato. “Foi para dizer ‘Olá, estamos aqui e isto é mais ou menos como é a nossa vida’. Não são cachos laterais, casacos compridos e homens de barba, como o estereótipo polonês”, ela insiste.

A necessidade de afastar os estereótipos e encorajar os poloneses a reconhecer seu passado judaico foi salientada por uma pesquisa recém-publicada pelo jornal Rzeczpospolita, em que 61% dos 1.250 jovens entre 17 e 18 anos pesquisados disseram que não ficariam contentes se descobrissem que seu namorado ou namorada era judeu ou judia, enquanto 45% disseram que preferiam não ter um judeu na família e 44% não gostariam de ter um vizinho judeu.

“Estou chocada, especialmente quando se considera que estamos falando sobre jovens de Varsóvia, que viajam muito hoje em dia, mas acho que é uma expressão do quanto a história dos judeus na Polônia foi ofuscada”, diz Jan Gross, um historiador polonês na Universidade Princeton (EUA), que muitas vezes foi criticado por poloneses por ousar confrontá-los com seus próprios capítulos sinistros de antissemitismo.

Krystyna Budnicka, uma sobrevivente do gueto que foi retirada pelos esgotos, mas perdeu toda a família, insiste que viu uma mudança de atitude em relação aos judeus.

“Pelo menos de uma perspectiva política é inadequado ser antissemita, mas será mais difícil mudar a mentalidade geral, apesar da tragédia da Shoah”, diz a mulher de 81 anos, que também se assimilou depois da guerra para garantir sua sobrevivência.

Ela aprovou o novo símbolo de solidez e renovação oferecido pelo museu para a Varsóvia moderna, enquanto via o local do antigo gueto da janela de seu apartamento no 14º andar e lembrava que toda a cidade foi queimada pelos nazistas.

“Toda a topografia de Varsóvia mudou. Não restou nada da minha infância, nada com que eu tenha uma ligação”, ela diz. “Meu jardim da infância, minha escola, nossa casa — até as ruas onde elas ficavam — tudo desapareceu. O único lugar onde eu posso ir sem ficar desorientada são os túmulos onde meus avós estão enterrados. Pelo menos quando vou lá tenho certeza de que meus pais um dia estiveram ali.”

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