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A frente progressista que põe o Uruguai na dianteira da América Latina

15 anos do projeto progressista alçam país à condição de o menos desigual da região, mas eleições são consideradas as mais difíceis do ciclo

Daniel Martínez (Foto: Reprodução/Wikipedia)
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*Com Igor Veloso, de Montevideo


Não perder o bom, fazer melhor. O coração da campanha da Frente Ampla do Uruguai vibra na batida do legado de quinze anos de redução da pobreza, avanço na proteção a minorias, em pautas polêmicas como a liberação do aborto, a legalização da maconha e crescimento econômico, colocando Daniel Martínez como o favorito para as eleições presidenciais de 27 de outubro ante as propostas conservadoras de LaCalle Pou do Partido Nacional e de Ernesto Talvi dos Colorados.

“Construímos durante três mandatos uma democracia sólida e a mais igualitária da região com uma identidade progressista, patrimônio de toda a sociedade e o povo está disposto a defender isso, sobretudo vendo que acontece em países vizinhos. A mudança para nós não tem uma conotação nem positiva nem negativa, já sabemos o que temos”, afirma Graciela Villar, candidata frenteamplista à vice-presidenta.

O fenômeno da unidade alcançada pela Frente passa pela conciliação de pólos distantes, do Partido Democrata Cristão ao Partido Comunista, possibilitando às gestões de Pepe Mujica – candidato ao senado – e do presidente Tabaré Vasquez desenvolver programas na área social, do cartão social com a distribuição de renda aos mais pobres ao sistema de cuidados, profissionais contratados pelo estado para acompanhar idosos em situação vulnerável. Na educação, o progresso passa pela interiorização do ensino superior, antes concentrado em Montevideo, à internet livre em todas escolas junto à entrega de um computador aos alunos e professores da rede pública, afora a melhora nos salários.

“Eu tenho memória, este governo permite aos pobres vida digna, remunera melhor os professores, policiais, funcionários. Antes com um quilo de erva ou azeite se podia abrir um armazém pois as pessoas só podiam comprar 50, 100 gramas. Estamos muito melhores do que quando estávamos com os Colorados e os Blancos (Nacional), para eles os agricultores devem trabalhar mais de oito horas, lhes interessa as classes altas”, compara o pequeno produtor José Ayala, morador de Rocha.

A aposta da oposição

Mesmo com lugar destacado em termos de desenvolvimento humano, a oposição tenta evitar a quarta vitória da Frente destacando o custo de vida com o alto preço da comida, do transporte público – a passagem de ônibus custa 4 reais – e a necessidade de alternância de poder. Nesses aspectos se concentra os argumentos do filho do ex-presidente LaCalle Pou, Luis LaCalle Pou, que rebateu a comparação com o presidente da Argentina, Maurício Macri no único debate realizado, o primeiro em 25 anos.

“Comparar com Argentina não é faltar respeito ao Partido Nacional, é faltar ao respeito à opinião pública. Quem sobe as tarifas em Uruguai é a Frente Ampla, como faz Macri”, respondeu o candidato que se apresenta como Luis em suas peças de campanha, fortalecida no interior enquanto na capital prevalecem as bandeiras da Frente nos diferentes bairros. Outro ponto levantado pelo representante dos blancos foi a existência de moradores de rua, sobretudo em Montevideo, apesar da construção de centros de passagem diurnos e noturno. insuficientes à toda população nessa condição e ainda que a pobreza tenha se reduzido de 40% para 9% desde 2005.

O economista Talvi, por sua vez, do tradicional Colorado, partido com mais tempo no poder, enfatiza o desemprego, embora os dados do Instituto Nacional de Estatística registrem 9% de desocupação, e garante que os níveis aproximam o país da recessão. “O gasto público com funcionários é demasiado e provoca desequilíbrio fiscal”, pontua o empresário Bruno Avelar, apoiador do candidato, que vem perdendo espaço na corrida eleitoral.

Por outro lado, a instalação de uma nova planta de celulose pela empresa UPM , projeto apoiado pelo oficialismo com a previsão de geração de oito mil vagas recebe críticas de ambientalistas e parte da esquerda pelos riscos potenciais ao ecossistema. O protesto contra a multinacional e o projeto foram reprimidos pela polícia com a detenção de manifestantes.

“O exercício de governar desgasta. Muitos não sabem do que se passava antes com a inflação e a miséria e pensam que a lei das domésticas, o seguro desemprego e a qualificação dos trabalhadores, as famílias que pela primeira entraram nas universidades, a realização de 90 mil operações de catarata pelo Hospital dos Olhos, a distribuição de tablets aos idosos, são para sempre, mas não se sabe o que acontecerá caso ocorra uma mudança no poder”, preocupa-se a enfermeira aposentada Ana González.

Viver sem medo

É comum no Uruguai mulheres sozinhas caminhando a qualquer hora da madrugada ou pessoas mexendo em seus celulares sem preocupação. Apesar da sensação de segurança incomparável aos vizinhos, junto à eleição presidencial e parlamentar, os cidadãos votarão em um projeto que, se aprovado, significará a militarização da polícia e o aumento do poder dos setores de repressão, permitindo buscas sem mandato e a inserção dos militares em atividades de segurança interna.

“Essa proposta conservadora marcha na contramão da nação que tornou-se referência pela liberdade ao regular o mercado da maconha – cada cidadão registrado junto aos órgãos oficiais pode comprar até 40 gramas mensais em farmácias ou clubes credenciados – ao legalizar o aborto até a 12ª semana e aprovar a chamada lei Trans, garantido direitos à comunidade”, observa a estudante Camila Burgos. Outro exemplo da abertura uruguaia está na universidades, acessíveis a toda a população e a estrangeiros residentes no país.

Entre os que defendem a medida estão setores da extrema-direita, cujo expoente maior é o candidato Manini Rios, ex-chefe das forças armadas expulso do cargo pelo presidente Tabaré pelas declarações políticas enquanto ocupava o posto. Rios, opacado na disputa presidencial, esteve no Brasil recentemente para encontrar-se com o vice-presidente Mourão. Contrapondo-se à campanha de terror, milhares de uruguaios reuniram-se em Montevideo em setembro para o festival “O medo não é a forma – Não à reforma”, rechaçando os resultados ineficazes da militarização em lugares como o Rio de Janeiro, citando a morte de crianças em episódios envolvendo ações da PM. A rejeição se expressa também pelos que se ressentem da atuação das forças armadas durante a ditadura. Até hoje ossadas de desaparecidos durante o período são encontradas no país, revivendo o passado.

Mirando o futuro, a dianteira com 40% das intenções de Martínez, ex-prefeito bem avaliado de Montevideo, ainda dá margem à oposição para chegar ao segundo turno, repetindo o cenário das últimas três eleições. A decisão sobre o novo presidente e os eleitos para a Câmara e Senado, ambos de maioria frente amplista, determinarão se o Uruguai seguirá como eixo de vanguarda para a esquerda latinoamericana ou se a onda conservadora emplacará seus representantes também no extremo sul do continente.

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