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A fome, o caos e os conflitos que aprofundam a crise na Venezuela

Difícil entender a Venezuela sem colocar os pés lá, mas o quebra-cabeça desvenda-se rápido

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Difícil entender a Venezuela sem colocar os pés lá, mas o quebra-cabeça desvenda-se rápido. De Roraima, entramos no país pelas “trochas”, como eram chamados os caminhos ilegais quando a fronteira estava fechada. Circulamos pelas cidades do sul, gravamos dezenas de depoimentos e conversas com os venezuelanos para um documentário em produção. Relatos de quem resiste e de quem fugiu, porque resistir, muitas vezes, significa passar fome. Tentamos organizar por capítulos:

La hambre

Todos os dias, milhares de venezuelanos atravessam a fronteira para comprar bens de consumo básico no Brasil. Arroz, óleo, papel higiênico, feijão… “Temos de comprar comida em outro país para poder sobreviver”, afirma Marisa S., de 54 anos, ao caminhar por uma das “trochas”. Na Venezuela, o cenário é desolador. Prateleiras das lojas vazias, muita gente pelas ruas em busca de comida. A única coisa que possuem em abundância são quilos e quilos de notas de dinheiro que não valem nada. Muitos venezuelanos se dispõem a conversar conosco: camponeses, mães solteiras, índios, professores, médicas, militares e ex-militares, chavistas, juízes, transexuais, comerciantes, policiais e contrabandistas. A palavra hambre – fome, em espanhol – é onipresente nos depoimentos.

Famílias indígenas também migram para o Brasil. Selva M., de 37 anos, mostra as prateleiras vazias de um mercado. É preciso aventurar-se nas trochas da fronteira para conseguir bens de consumo básicos

Enquanto tomo um café aguado em Santa Elena de Uairén, Selva M., de 37 anos, aproxima-se. Está desesperada e pede para ser entrevistada. Não é todo dia que conseguem falar com jornalistas estrangeiros na Venezuela. “Vivemos uma situação bastante dramática. Meninos desnutridos, idosos morrendo sem remédios e jovens fugindo. Vou passar mais um Natal sem a minha família”, diz, em meio ao choro. “Somos um país rico, temos petróleo e ouro, mas a população é pobre. Não pertenço a oposição alguma, simplesmente peço uma mudança de governo e que Deus tenha misericórdia do povo.”

Ricardo F., estudante de 22 anos que participou de numerosos protestos em Caracas, acrescenta: “Muitas pessoas são reféns da sobrevivência. As pessoas estão tão desesperadas e famintas que aceitam as migalhas que o governo oferece para aplacar a raiva. Um punhado de arroz em troca do silêncio”.

A fronteira e a Guarda Nacional

Enquanto a fronteira com o Brasil está fechada, de 21 de fevereiro a 10 de maio, atravessamos nos pontos vigiados pelas milícias e pelas trochas. Acompanhamos o vaivém dos venezuelanos várias vezes, a pé e de carro. Nos postos de controle da fronteira, a Guarda Nacional Bolivariana cobra uma taxa-propina de 30 a 40 reais para liberar a passagem de cada pessoa na fronteira. Para um carro carregado de produtos, o valor aumenta para 200 reais. Como as trochas passam por território indígena, há também a cobrança de um pedágio.

É preciso aventurar-se nas trochas da fronteira para conseguir bens de consumo básicos

Em 23 de fevereiro de 2019, logo após o fechamento da fronteira, a Guarda Nacional faz uma incursão na aldeia de San Francisco Yuraní, na comunidade de Kumarakapay, da etnia Taurepang. Os disparos de armas de fogo deixam uma mulher morta e 25 feridos. Por meio de um ativista, conseguimos vídeos e fotos dessa ação. Na internet há vários outros gravados pelos celulares. Os “primos” brasileiros (da mesma etnia Taurepang, mas que vivem em território brasileiro) acolheram, logo em seguida, 837 indígenas em fuga da Venezuela. “O interesse do exército é militarizar os territórios indígenas, porque estes possuem uma grande riqueza: os minerais estratégicos”, diz um dos caciques da comunidade.

Além de petróleo, a Venezuela é rica em coltan, nióbio, urânio e tório. Produtos tecnológicos de uso cotidiano, como celulares e computadores, precisam desses minerais, assim como a tecnologia nuclear. Por seu uso cada vez mais massivo em setores estratégicos, pesquisadores preveem um aumento na demanda global, que poderia triplicar até 2025. E foram descobertas pelo país muitas minas de coltan, o “ouro cinza”, combinação de columbita e tantalita.

Os refugiados

Em média, de 500 a 600 venezuelanos chegam ao Brasil diariamente, a maioria em busca de assistência humanitária.

Eduardo Stein, representante da Acnur, a agência da ONU para refugiados, observa que “o número de migrantes venezuelanos atingiu 4,3 milhões e cresce a cada dia”. O Brasil é um dos países da América Latina que mais recebem venezuelanos. São mais de 180 mil refugiados e migrantes venezuelanos morando aqui, segundo as Nações Unidas. As estatísticas não consideram os milhares de migrantes ilegais. Em média de 500 a 600 venezuelanos chegam diariamente ao Brasil, e a maioria deles precisa urgentemente de assistência humanitária, atesta a Acnur.

Roraima é o estado brasileiro que recebe todo esse fluxo de migrantes. Em um dos abrigos mantidos pela Acnur e pela ONG italiana AVSI, encontramos Rosângela, de 30 anos, mãe solteira da pequena Mia: “Minha filha iria nascer prematura, de 31 semanas, e o hospital da minha cidade não tinha recursos. Por isso, quando estava na ambulância me disseram para ir parir no Brasil. Estou aqui desde o começo do ano”.

Nos abrigos de Boa Vista, as crianças carregam no corpo e no olhar as marcas da tragédia

Muitos pais tiveram de deixar os filhos na Venezuela. A grande maioria saiu em busca de emprego. Desafiando a crise do mercado de trabalho, a ONG AVSI criou um projeto para arrumar ocupação para os refugiados. “As mulheres venezuelanas foram as mais afetadas com esta crise política e social. Foram as primeiras a perder os empregos, especialmente nas lojas, nos escritórios e nos hospitais. Voltaram a cuidar apenas dos filhos, como antigamente”, conta Charis J., de 34 anos, médica e voluntária de um abrigo em Boa Vista. “As mais pobres são as que ficam mais doentes pelo desespero. O que vemos são mulheres à frente das marchas e das manifestações.”

Maduro ou Guaidó?

A história do engenheiro ambiental Joaquim L., de 53 anos, é uma aventura. Jovem militante de esquerda, atuou nos serviços secretos de Hugo Chávez, escapou milagrosamente de um fuzilamento, foi para a selva colombiana com as Farc e, agora, vive refugiado num abrigo em Boa Vista.

“Chávez, dentro dos limites, não era mal. Enquanto a luta dele foi por inclusão, a de Maduro não tem nada de revolucionário. Revolução significa tudo o que gera movimento, mudanças. Maduro e os militares estão interessados em manter os privilégios”, relata, com amarga desilusão. Assim como outros refugiados, ele apoia Juan Guaidó, o autoproclamado presidente interino. Mas a desconfiança é grande.

Existem mais de 180 mil migrantes e refugiados venezuelanos no Brasil, estima a ONU

“Guaidó é um dos últimos atores recrutados que, juntamente com o governo de Maduro, atuam nesta peça teatral que é a política venezuelana. Ele, o Guaidó, é produto do mesmo sistema. Exerce o papel de adiar a explosão social”, avalia o juiz Oswaldo José Ponce, de 54 anos. “Se explodisse uma guerra civil, a indústria da mineração seria prejudicada e ninguém deseja isso”, explica.

A indústria da mineração venezuelana, assim como a do petróleo, é controlada pelas Forças Armadas, por meio da Camimpeg, a Compañía Anónima Militar de Industrias Mineras, Petroleras y Gasíferas. Precisa continuar dando lucro a todo custo. Em meio à disputa política travada entre Nicolás Maduro e o conservador Juan Guaidó, “quem paga o pato roto é o povo venezuelano, que permanece neste estado de miséria num pais tão rico”, conclui amargamente o juiz Ponce, que migrou para o Brasil em 2015. Ele tocou arpa e violão nas ruas para sobreviver até revalidar seus títulos. Atualmente recomeçou sus carreira jurídica em território brasileiro.

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