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A Europa hipnotizada
O avanço da extrema-direita nas eleições de junho deve impulsionar os partidos nacionalistas em todo o continente


Será difícil, se não impossível, que os ganhos da extrema-direita nas eleições do próximo mês a façam conquistar mais poder no Parlamento Europeu, mas eles poderão impulsionar os partidos nacionalistas nas capitais europeias, alertam especialistas. As consequências desse fenômeno podem ser até mais desastrosas que a circunstancial guinada à direita no Legislativo.
Pesquisas indicam que os partidos de extrema-direita ou conservadores linha-dura poderão terminar em primeiro lugar em nove Estados da União Europeia, incluindo Áustria, França e Países Baixos, nas eleições de 6 a 9 de junho, e em segundo ou terceiro lugar em outros nove, como Alemanha, Espanha, Portugal e Suécia.
A ascensão prevista do grupo de extrema-direita Identidade e Democracia (ID) e do conservador-nacionalista Conservadores e Reformistas Europeus (ECR) gerou especulações sobre uma “virada brusca à direita” no Parlamento Europeu, ameaçando projetos-chave do bloco, como o Acordo Verde. O ID, a incluir o Reagrupamento Nacional (RN) de Marine Le Pen na França, a Liga de Matteo Salvini na Itália, a Alternativa para a Alemanha (AfD), o Partido da Liberdade na Áustria (FPÖ) e o Vlaams Belang na Bélgica, está a caminho de ser o grande vencedor, passando de 59 eurodeputados para, talvez, 85.
O ECR nacional-conservador, que inclui os Irmãos da Itália de Giorgia Meloni, o partido Lei e Justiça (PiS) da Polônia, o Vox da Espanha, o partido dos Finlandeses e os Democratas da Suécia, está em condições de eleger perto de 75 eurodeputados, um avanço mais modesto.
Os analistas avaliam, porém, que o avanço da extrema-direita, embora considerável, pode fazer pouca diferença imediata no funcionamento do Parlamento – uma das três instituições centrais da União Europeia, juntamente com o Conselho Europeu, que representa os governos, e a Comissão Europeia, o Executivo do bloco.
Apesar da tendência captada por pesquisas, os centristas têm grandes chances de manter o controle do Parlamento
Em primeiro lugar, os partidos que compõem a “grande coalizão” de conservadores, socialistas e liberais “provavelmente perderão um número substancial de assentos, mas manterão a maioria geral”, avalia Luigi Scazzieri, do grupo de pensadores Centro para a Reforma Europeia (CER). O principal grupo de centro-direita do Partido Popular Europeu (PPE), a incluir os Democrata-Cristãos alemães (CDU) da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, deverá continuar como o maior no Parlamento de 720 lugares, com em torno de 175 eurodeputados, enquanto a Aliança Progressista de Socialistas e Democratas, de centro-esquerda – a reunir siglas como o Partido Socialista Operário da Espanha (PSOE) –, caminha para o segundo lugar, com até 145 eurodeputados.
Embora o grupo liberal Renovar, que inclui o centrista Renascimento do presidente francês, Emmanuel Macron, possa perder uma dúzia de assentos, possivelmente retendo apenas 80, isso ainda deve garantir que, “nas grandes decisões, o centro se manterá”, afirma Nicolai von Ondarza, do Instituto para Assuntos Internacionais e de Segurança, da Alemanha.
Além disso, segundo os analistas, o ID e o ECR discordam tão profundamente que é difícil vê-los trabalhar em conjunto. “Tenho quase certeza de que não veremos um grupo plural de extrema-direita no Parlamento Europeu”, diz Von Ondarza. “Eles estão muito divididos.”
Os dois grupos podem concordar amplamente em algumas questões, como a migração (na qual sua posição linha-dura se tornou, de qualquer modo, uma tendência dominante na Europa) e o adiamento ou mesmo a revogação da legislação verde, mas estão divididos em outras, como a posição em relação à Rússia e à Ucrânia.
Os partidos do ECR são majoritariamente populistas, nacionalistas e conservadores, e muitos estão, ou estiveram, no governo. São críticos da União Europeia (às vezes duramente), mas, em última análise, fazem parte daquilo que Von Ondarza descreve como “a grande máquina de compromisso da UE”. Ajudaram, inclusive, a redigir a legislação do bloco.
Os membros do ID, ao contrário, são na maioria de extrema-direita, anti-UE – e muitas vezes vistos como extremistas em seus países. No cenário europeu, são mais perturbadores do que construtivos: a AfD fala abertamente de um “Dexit” (referendo para a saída da Alemanha da UE), enquanto as propostas do RN de “preferência nacional” para os franceses em empregos e benefícios não são compatíveis com a permanência no mercado único.
Farra extremista. As eleições europeias devem fortalecer ainda mais a Liga de Matteo Salvini na Itália, o Partido da Liberdade na Áustria e o Fidesz de Viktor Orbán na Hungria – Imagem: FPO, Redes sociais e Gabriele Maricchiolo/NurPhoto/AFP
Em nenhum lugar a divisão entre os grupos é mais clara do que sobre a Rússia. Desde a invasão em grande escala da Ucrânia por Moscou, os membros do ECR, como os Irmãos da Itália de Meloni e o PiS da Polônia, revelaram-se firmemente pró-Otan e pró-Kiev. Em contraste, muitos integrantes do ID – particularmente os filiados à AfD – permanecem mais ou menos abertamente pró-Rússia.
Há também tensões internas, observam os analistas. Dentro do ID, Marine Le Pen, em particular, manifestou críticas à AfD depois que membros participaram de uma reunião secreta para discutir um plano de remoção em massa de estrangeiros da Alemanha, incluindo os que detêm passaporte alemão. A detenção, no mês passado, do assistente parlamentar de Maximilian Krah, o principal candidato do partido nas eleições, por suspeita de espionagem para a China, instigou dúvidas de alguns parceiros sobre a AfD, cujos elementos são classificados pelo serviço de inteligência interna da Alemanha como “extremistas de direita comprovados”.
É muito provável que haja algum tipo de reorganização dos dois grupos de extrema-direita após as eleições – com a decisão do primeiro-ministro autoritário da Hungria, Viktor Orbán, cujo partido Fidesz deixou o PPE em 2021 e cujos eurodeputados não pertencem atualmente a nenhum grupo parlamentar europeu, o que é definido como essencial.
Muitos observadores consideram que seus 14 eurodeputados previstos acabarão por aderir ao ECR – mas isso, como observa Von Ondarza, “significaria quase certamente que o partido Finlandeses e os Democratas suecos sairiam” devido, entre outras coisas, à posição do governo húngaro favorável ao Kremlin.
Qualquer que seja a constelação que surja, prevê Mujtaba Rahman, da consultoria de risco Eurasia Group, a direita populista estará “desorganizada demais para trabalhar em conjunto. Eles simplesmente não conseguirão ser coesos. Terão capacidade de realizar reuniões conjuntas, votar estrategicamente? Não acredito”.
No entanto, mesmo que a grande coligação parlamentar de centro-direita, centro-esquerda e liberais se mantenha, sua maioria reduzida poderá ter consequências, especialmente em áreas políticas onde o conservador PPE pode ser tentado a desacelerar o progresso.
“O discurso da extrema-direita já venceu na União Europeia em termos de imigração”, disse Von Ondarza, “e as coisas começam a se mover nesse sentido sobre a política climática: o PPE já se opõe a algumas partes do acordo verde. Poderia ficar tentado a apoiar o ECR para bloqueá-las, e talvez também algumas questões de política familiar e segurança.”
A direita populista estará “desorganizada demais para trabalhar em conjunto”, pondera Mujtaba Rahman, da consultoria Eurasia Group
Von der Leyen já disse que, dependendo da composição do Parlamento e de quem estiver em cada grupo, o PPE não exclui trabalhar com o ECR (embora um ECR com Orbán possa complicar as coisas, muitos partidos relutam em se associar a ele).
O papel da primeira-ministra italiana Meloni, que se revelou uma participante surpreendentemente construtiva na UE, poderá revelar-se crítico. “Ela está tentando convencer Orbán a avançar na sua direção com respeito à Ucrânia, ou à UE”, disse Rahman. “Ela entendeu que seu sucesso tem a ver com ser construtiva.”
Von Ondarza avalia que Meloni enfrenta uma grande escolha. “Ela pode aliar-se a Orbán e afastar definitivamente o ECR do centro, ou pode alinhar-se a Von der Leyen. Se fizer a primeira opção, perderá tudo o que ganhou até agora.”
No entanto, é fora de Bruxelas e de Estrasburgo que estas eleições para o Parlamento Europeu poderão ter seu maior impacto, alertam analistas. Os partidos de extrema-direita já estão em governos de coligação na Itália e na Finlândia e prestam novamente apoio parlamentar na Suécia.
É muito provável que um partido de extrema-direita seja uma grande parte do próximo governo holandês, depois que o Partido para a Liberdade, de Geert Wilders, terminou em primeiro lugar nas eleições de novembro. O Vlaams Belang está a caminho de ficar em primeiro lugar na Bélgica de língua flamenga nas eleições nacionais em junho. O FPÖ deverá vencer as eleições austríacas ainda este ano. Já a AfD poderá vencer três eleições estaduais na Alemanha.
“Um forte resultado eleitoral da extrema-direita provavelmente lhes dará mais impulso”, observa Scazzieri, do CER. “Uma forte atuação do FPÖ poderia levá-lo à vitória na votação nacional. Se seu líder, Herbert Kickl, se tornar chanceler, Orbán e Robert Fico da Eslováquia seriam acompanhados por um terceiro líder populista cético sobre a Ucrânia.”
Na França, acrescenta Rahman, Le Pen parece prestes a humilhar Macron, com a chapa do RN obtendo talvez o dobro de votos da agremiação do presidente. Na Alemanha, a AfD pode ter perdido 3 ou 4 pontos nas pesquisas após uma série de escândalos, mas ainda está em vias de terminar em segundo lugar, atrás da CDU, de oposição, mas à frente do Partido Social-Democrata de centro-esquerda do chanceler Olaf Scholz.
“O que mais me preocupa é o impacto destas eleições sobre líderes já fracos”, diz Rahman. “Macron e Scholz já estão em dificuldades. No nível da UE, o maior impacto destas eleições será enfraquecer ainda mais esses líderes.” Para Scazzieri, a influência plena das eleições europeias de 2024 “será sentida ao longo do tempo”, com as principais forças políticas sendo pressionadas para agir corretamente em questões como a política climática – e, potencialmente, com uma mudança do equilíbrio de poder entre as capitais nacionais. •
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Publicado na edição n° 1311 de CartaCapital, em 22 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A Europa hipnotizada’
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