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A eterna secessão nos Estados Unidos

Seriam os democratas republicanos hipócritas e os republicanos, democratas sinceros?

Guerra Civil
Guerra Civil lançou os EUA na modernidade, mas deixou feridas nunca cicatrizadas. Foto: iStockphotos Guerra Civil lançou os EUA na modernidade, mas deixou feridas nunca cicatrizadas. Foto: iStockphotos
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A nossa memória recente sobre as eleições presidenciais norte-americanas remete a resultados apertadíssimos e a disputas judiciais, no contexto de uma ferrenha polarização que descambou para a baixaria e a irracionalidade com o emergir da chamada direita alternativa, a partir de 2016. Mas sempre foi assim. Os EUA são um país profundamente heterogêneo e o fracionamento social e ideológico por lá se aglutina, por aproximação, no entorno dos dois principais partidos.

A história do bipartidarismo dos EUA é curiosa e eloquente. Os democratas, que hoje representam o que há de mais progressista, o respeito às minorias e a contenção do grande capital, foram, contudo, ao tempo da abolição da escravatura, o centro da resistência escravista que gestou a Ku Klux Klan.

Nas eleições de 2020, os democratas reclamam do assédio de milícias republicanas sobre amedrontados eleitores democratas, mas na eleição que elegeu o republicano Ulysses Grant, 18º presidente, logo após a Guerra da Secessão, em 1868, foram os democratas que intimidaram eleitores negros.

A eleição de Harry Truman, um democrata, em 1945, marcou a inversão de papéis e estabeleceu, grosso modo, a posição atual das peças no tabuleiro. Truman baixou decretos contra a segregação racial nas Forças Armadas e no funcionalismo público, além de expressar publicamente opiniões antirracistas. Esse swing ideológico se consolidaria nos anos 1960, com a morte de Martin Luther King, quando, em meio aos conflitos deflagrados e ao ódio racial, os democratas abraçaram as políticas de ação afirmativa e passaram a arrogar a sua paternidade. 

O apoio do presidente democrata Bill Clinton às políticas de preferência racial nos anos 1990 e a eleição de Barack Obama, em 2008, com mais de 80% dos votos negros, sedimentaria a transição democrata e, em contraponto, também a republicana.

É certo que nessa tensão esgarçante duas percepções me parecem adequadas. O papel da Suprema Corte de transmudar decisões políticas em juízos técnico-jurídicos, como fez, por exemplo, em Brown vs. Board of Education, para dar cabo da segregação em escolas. E o fato de que a polarização não impede que o país se mova, imperial e exuberante, na direção dos seus propósitos.

O entra e sai de republicanos e democratas não mudou essencialmente a política norte-americana para a América Latina e para o Brasil. Noam Chomsky diz que, desde 1940, os estrategistas do seu país atribuíram-nos a função de provedores de matéria-prima e de consumo. E, coincidentemente, aqui estamos nós, de volta a uma economia agrário-minerário-exportadora, em pleno século XXI.

Um republicano, George W. Bush, declarou guerra ao terror, mas foi um democrata, Obama, quem orgulhosamente matou Osama Bin Laden, o líder da Al-Qaeda, cuja família investia pesadamente, até 2001, ano da queda das Torres Gêmeas, em fundos da Carlyle. Obama, ganhador do Nobel da Paz, foi, vale lembrar, denunciado pelo The Guardian por supostamente manter uma secreta e inesgotável killing list, executada pela famigerada JSoc, a Joint Special Operations Command, que associa quadros militares com efetivo provido por empresas privadas.

Foi o governo Bush que invadiu o Iraque, depôs e matou Saddam Hussein. Mas não se deve esquecer que Clinton, um presidente democrata, em 1998, em meio às votações sobre o seu impeachment, lançou inclementes ofensivas militares contra aquele país, precisamente porque o ditador iraquiano se negara a cooperar com inspetores da ONU em busca de armas de destruição em massa, as mesmas que deram estofo legal para a Guerra de Bush, em 2003, e que jamais foram encontradas.

A intensa participação do aparato de inteligência, durante o governo Obama, na chamada Primavera Árabe é outro segredo mal guardado. Os EUA incensaram a onda revolucionária de manifestações e de protestos que ocorreram no Oriente Médio e no Norte da África, a partir de dezembro de 2010. Houve revoluções na Tunísia e no Egito, uma guerra civil na Líbia e na Síria, para além de protestos de maiores ou menores proporções na Argélia, no Bahrein, no Djibuti, no Iraque, na Jordânia, em Omã, no Iêmen, no Kuwait, no Líbano, na Mauritânia, no Marrocos, na Arábia Saudita e no Sudão.

Não são poucos os especialistas a afirmar que a Guerra do Iraque, a Primavera Árabe e a dissolução de governos que, a despeito de ditatoriais, controlavam as intrínsecas tensões da região, concorreram para o surgimento de um mal maior, o Estado Islâmico do Iraque e Levante, mais conhecido como ISIS, um califado terrorista que tem espalhado barbárie e instabilidade no Oriente Médio e no mundo todo.

As relações íntimas de Donald Trump com Wall Street e com o Corporate America são paradoxalmente as mesmas que levaram Hillary Clinton a perder as eleições de 2016. E, talvez por isso, um amigo vive a repetir, ao fazer prognósticos sobre as eleições norte-americanas deste ano, que os democratas são republicanos hipócritas e os republicanos são democratas sinceros. É a imagem de uma guerra política que emula um antagonismo na essência inexistente.

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