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Liberalismo clássico e neoliberalismo são talvez duas faces do liberalismo, mas não se confundem

Garantias constitucionais não são liberdades burguesas, mas um patrimônio político que deve conservar e que representa a nova utopia da universalidade dos direitos fundamentais

Liberalismo clássico e neoliberalismo são talvez duas faces do liberalismo, mas não se confundem
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Quando me perguntam qual é, para mim, a convicção política mais importante, costumo responder de forma negativa – não acredito que qualquer fim social, por mais nobre que seja, possa ser alcançado com sacrifício das garantias constitucionais modernas. Nada de bom pode ser conseguido se não mantivermos esse mínimo de autonomia perante qualquer tipo de poder social que faz de nós soberanos únicos de um espaço de atuação, limitado, é certo, mas indispensável à nossa afirmação como indivíduos dotados de razão. Filio-me, portanto, nessa antiga tradição política ocidental que desconfia do paternalismo estatal na medida em que este pretenda tratar os cidadãos como crianças.

É talvez por essa razão que me entristece profundamente ver largos setores da esquerda confundirem propositadamente o liberalismo clássico do século XVIII com o que se convencionou chamar de neoliberalismo nos dias de hoje. Não, não são a mesma coisa. O primeiro surgiu há 200 anos como pensamento revolucionário contra o privilégio do nascimento e da classe. O segundo afirmou-se há várias décadas como movimento reacionário contra o Estado de Bem-estar Social. O primeiro é filho da Revolução Francesa, o segundo é produto da reação política da direita contra a intervenção estatal do pós-Guerra na distribuição de recursos e na procura de igualdade de oportunidades. Liberalismo clássico e neoliberalismo são talvez duas faces do liberalismo, mas não se confundem. Dois mundos em contraste. O primeiro, o liberalismo clássico, coloca o que vulgarmente se chama de liberdades civis no centro do seu programa político. O segundo, o neoliberalismo, preocupa-se apenas com a liberdade econômica – mercado, contrato e concorrência como única forma de organização social válida.

Parece-me absolutamente necessário destacar um ponto crítico na comparação. Essas duas visões de sociedade e da política não representam uma continuação histórica como o prefixo “neo” pode fazer crer. O neoliberalismo não é uma evolução do clássico liberalismo do ­laissez-faire, que procurou definir uma área para o que pertence às regras do mercado e outra para o que pertence à racionalidade política. O movimento neoliberal procura antes uma ruptura, nada mais existe além do mercado. O Estado não está ao lado do mercado, mas debaixo da vigilância do mesmo. Não é a economia que deve estar sujeita às regras da política, mas a política é que deve estar sujeita às regras da concorrência e do lucro. A utopia neoliberal é isso – difundir o mercado por todo o lado.

Não admira, portanto, que programa tão radical levasse ao esquecimento dos valores básicos em nome dos quais o liberalismo clássico nasceu: as liberdades individuais resultantes dos direitos naturais do ser humano. Assim foi historicamente um pouco por todo o lado onde a doutrina neoliberal se quis impor com a sua radicalidade econômica. Assim foi no Chile, verdadeiro laboratório dessa experiência histórica, com a sua ditadura militar e o seu cortejo de violência e de infâmias que os brasileiros conhecem bem. Nessa historia trágica de torturas e prisões, não faltou sequer o fino toque dos elogios do príncipe do neoliberalismo Friedrich Hayek ao ditador Pinochet (“Prefiro uma férrea ditadura liberal a um governo democrático completamente alheado do liberalismo”). Enfim, o neoliberalismo não sabe o que é o liberalismo, tal como os neoliberais brasileiros parecem ter esquecido a democracia quando optaram por derrubar Dilma Rousseff e eleger Jair Bolsonaro.

Toda esta conversa tem a intenção, em síntese, de dizer isto – depois de tudo o que aconteceu no Brasil, depois da violação dos direitos constitucionais de Lula e depois da instrumentalização do Poder Judiciário ao serviço do interesse político, a esquerda brasileira deve agora olhar para as garantias constitucionais como parte essencial do seu programa e do seu combate político. Depois destes anos sombrios, a esquerda brasileira descobriu-se sozinha a lutar pela democracia e pelas liberdades civis. Também o neoliberalismo brasileiro não resistiu à tentação de suspender o Estado de Direito para impor a sua agenda econômica, menos direitos dos trabalhadores e menos proteção social. Reforma trabalhista e teto de gastos.

Sim, é certo que existe a urgência social do desenvolvimento, do desemprego, das desigualdades e da fome. Todavia, agora que sai da tormenta que visou o seu próprio banimento político, é talvez a altura de a esquerda brasileira não esquecer que as garantias constitucionais não são liberdades burguesas, mas um patrimônio político que deve conservar orgulhosamente para si e que representam a nova utopia da universalidade dos direitos fundamentais. Nas palavras inspiradoras de um dirigente socialista europeu do início do século XX, o socialismo será em liberdade ou não será.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1191 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JANEIRO DE 2022.

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