Mundo
A culpa é (só) do caipira?
Acadêmicos divergem sobre o peso da América profunda na ascensão de Donald Trump e das ameaças à democracia


Na política e na academia, há uma linha tênue entre o preconceito e a complacência. Nos últimos anos, a profunda divisão eleitoral nos Estados Unidos tem levado pesquisadores, acadêmicos e intelectuais a discordarem sobre as causas do comportamento de uma parcela da população cujas escolhas fazem diferença nas urnas: os brancos das zonas rurais que trocaram o Partido Democrata pelos rivais republicanos e, com maior convicção, pelo magnata Donald Trump. Durante décadas, esse eleitor foi menosprezado, relegado a segundo plano. Ou não. Talvez apenas tenha se sentido assim, como se tivesse sido deixado para trás no momento em que o discurso progressista avançou em direção aos centros urbanos e capturou a atenção dos candidatos e os esforços de políticas públicas. Embora grande parte do Centro-Oeste rural norte-americano tenha estado predominantemente ao lado do Partido Republicano desde a Guerra Civil, os democratas sempre contaram com a força rural dos sulistas brancos.
Nos anos 1970, o ex-presidente Richard Nixon foi, provavelmente, o primeiro a perceber que o ressentimento dos ruralistas poderia ser uma aposta republicana e deu início à chamada “Estratégia do Sul” para capturar o voto do eleitor branco do campo. A ação só viria, porém, a ser potencializada uma década depois, por Ronald Reagan, famoso pelos papéis de cowboy no cinema, em seus discursos que ressaltavam o “trabalho árduo”, os “valores familiares” e a “verdadeira América”, ditando os ideais rurais e a resistência conservadora contra um suposto elitismo liberal. A gota d’água para transbordar o ressentimento caiu em 1990, com a inauguração da rede de tevê Fox News e o sucesso de comentaristas reacionários e sem limites da estirpe de Rush Limbaugh.
Um novo livro, Raiva Rural Branca, aponta: quanto menos urbano é o estado, mais republicano ele é
“Durante três décadas, eles alimentaram os norte-americanos, rurais e não rurais, com uma dieta constante de queixas da guerra cultural. Embora o ambiente midiático não seja a resposta completa, acredito que ofereça uma explicação parcial à emergência da raiva rural branca”, afirma o professor de Ciência Política na Universidade de Maryland, em Baltimore, Thomas Schaller, coautor, ao lado do escritor Paul Waldman, do livro Raiva Rural Branca: A Ameaça à Democracia Americana. A obra foi lançada neste ano e rapidamente tornou-se best seller do New York Times, virou objeto de discussão nas redes sociais e, claro, de divergência entre colegas acadêmicos.
Nas 320 páginas, os autores argumentam que os brancos rurais representam uma ameaça à democracia como resultado de dois efeitos combinados. “Primeiro, as suas atitudes são menos favoráveis a uma democracia pacífica, secular e pluralista. Em segundo lugar, a nossa estrutura política inflaciona o seu poder de voto, particularmente no Senado e no Colégio Eleitoral. Se qualquer uma dessas afirmações fosse falsa, os seus votos não seriam problemáticos ou uma ameaça”, defende Schaller.
Gente como a gente. Trump vende a imagem de que se importa com os interioranos – Imagem: Mary Altaffer/AFP
Para o cientista político Nicholas Jacobs, professor no Colby College e coautor do livro O Eleitor Rural: A Política do Lugar e a Desunião da América, em parceria com Daniel Shea, lançado em 2023, os argumentos de Schaller e Waldman podem, a partir da caricatura do norte-americano rural enfurecido, alavancar a candidatura de Trump à Presidência. “Os manifestantes do 6 de Janeiro, da invasão do Capitólio, não eram mais propensos a vir de comunidades rurais do que de comunidades urbanas, mas imagino que a imagem que a maioria tem daquele episódio evoca uma visão da população rural, do campo. O problema começa aí, quando vemos uns aos outros como não somos e abandonamos qualquer esforço sincero para realmente entender o motivo de esse grupo votar da maneira que vota. É como se ‘soubéssemos’ o que pensam por causa da escolha eleitoral. A política, então, torna-se um jogo de soma zero, os riscos aumentam e nos defrontamos com uma ameaça existencial à sobrevivência do país a cada passo.”
Em 2018, o professor emérito de Sociologia da Universidade de Princeton, Robert Wuthnow, publicou o livro Os Deixados para Trás: Declínio e Raiva nas Cidades Pequenas da América. Durante sua pesquisa, Wuthnow descobriu que a maioria das centenas de residentes de cidades pequenas objeto de seus estudos era de pessoas “felizes com suas vidas”. “A raiva não é a emoção dominante na América rural. A América rural não é uma coisa. A América rural é enormemente diversificada, geográfica, econômica, racial, étnica e politicamente. O que os norte-americanos rurais querem depende de quem eles são. Alguns querem que a América seja branca, cristã e heterossexual, mas, numericamente, mais integrantes da base do MAGA (sigla para Make America Great Again) vivem em cidades e subúrbios do que em comunidades pequenas”, destaca.
Bode expiatório. A trupe golpista do Capitólio não veio da América profunda, como se imagina. Ela saiu dos centros urbanos – Imagem: Joseph Prezioso/AFP
Geralmente, ressalva Schaller, quanto mais rural é um estado, mais republicano é, e em todos os níveis do escrutínio: legislaturas estaduais e governadores, disputas na Câmara e no Senado e, claro, na votação presidencial. “É difícil compreender por que os brancos rurais apoiam, em média, menos os princípios democráticos, especialmente nas últimas décadas. Grande parte disso resulta do aumento dos ressentimentos rurais, parcialmente enraizados em atitudes raciais e sentimentos antigovernamentais. Os norte-americanos rurais sentem-se cada vez mais excluídos e deixados para trás, e existem algumas razões legítimas para que se sintam assim, mas outros também já se sentiram preteridos, nem por isso perderem seus compromissos democráticos, principalmente os seus vizinhos rurais e não brancos, a maioria composta de afro-americanos e latinos, por exemplo.”
O professor no Colby College acredita que o discurso dos republicanos ressoou profundamente entre os ruralistas porque os retratou como os verdadeiros defensores e representantes das comunidades rurais esquecidas da América. “Os eleitores rurais viam as políticas democratas por meio das lentes do elitismo urbano, ainda mais alienadas pela campanha de Hillary Clinton em 2016, que reforçou a percepção dos democratas como desligados da vida rural. Isso culminou numa mudança eleitoral significativa para os republicanos, impulsionada pela crescente identificação dos eleitores rurais com as mensagens que ressoavam mais intensamente as suas preocupações e valores.”
“A América rural é enormemente diversificada”, afirma Robert Wuthnow, autor de Os Deixados para Trás
Evidentemente, a popularidade de Trump na América rural não se deve apenas ao seu carisma ou posição política. Assim como Nixon, Reagan ou os apresentadores da Fox News, o ex-presidente soube explorar os ressentimentos que as comunidades rurais sentiam em relação ao Partido Democrata. Ele usou a seu favor a comunicação direta e sem filtros. E o tom agressivo e sem peias foi considerado pela maioria dos seus eleitores, não apenas nas zonas rurais, como um refresco, um alento em um mundo tedioso, no qual a política tradicional era engessada e não parecia transmitir sinceridade. Também como acontece em várias partes do mundo, a grosseria, as mentiras e a afronta aos mínimos padrões éticos, confundidas com uma resposta ao “politicamente correto”, são interpretadas por parte do público como sinais de autenticidade.
Ainda que as políticas públicas do Partido Democrata geralmente proporcionem benefícios mais concretos às zonas rurais ou que o desempenho da política econômica de Joe Biden seja melhor do que a percepção geral e haja um crescimento histórico do número de empregos, é como se os democratas não soubessem mais se comunicar com o eleitor do campo. Trump, ao contrário, consegue apelar de forma eficiente ao sentido de identidade e orgulho nas comunidades rurais, retratando-as como a “verdadeira” América.
Sem rodeio. Schaller vê no ódio racista e xenófobo da branquitude rural uma ameaça à democracia – Imagem: UMBC
Segundo Jacobs, a maior parte do apoio a Trump provém da crença entre os seus apoiadores de que ele não é como qualquer outra figura do establishment de Washington, que não é politicamente corrupto, embora seja moralmente sujo. E isso significa que esses eleitores passaram a ver os líderes convencionais e experientes como ultrapassados.
Embora o autoritarismo seja definitivamente uma ameaça à democracia norte-americana, pontua Wuthnow, os eleitores rurais, em geral, apoiam profundamente a democracia. “A ameaça vem dos eleitores, rurais e urbanos, que insistem em não ver o perigo de votar em um candidato presidencial que tem fortes inclinações autoritárias.”
A promessa de Trump de desmantelar a ordem política prevalecente e de enfrentar o declínio econômico nas zonas rurais atraiu os eleitores que alimentavam a paranoia de um sistema mantido para prejudicá-los. “Esse sentimento é agravado por uma mudança mais ampla na política rural, onde as queixas culturais e econômicas têm empurrado cada vez mais os eleitores para candidatos que prometem abalar o status quo e dar prioridade às suas preocupações. Trump destacou frequentemente a sua oposição aos acordos e políticas comerciais considerados prejudiciais às economias rurais, como aquelas que afetam a indústria do carvão. Essa agenda o posicionou como um defensor da América rural e de outros grupos, contra o que muitos, e não apenas a América rural, consideravam um governo federal indiferente e distante.” •
Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A culpa é (só) do caipira?’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.