Mundo
A culpa é da mensageira
Militares que empalaram preso palestino conseguem levar à cadeia a procuradora que os investigava
A procuradora-geral das Forças de Defesa de Israel, Yifat Tomer-Yerushalmi, foi presa no domingo 2, acusada de ter vazado à imprensa imagens captadas pelo circuito interno de uma prisão israelense que mostravam militares empalando um prisioneiro palestino. A vítima teve o cólon perfurado por um objeto introduzido em seu reto, além de costelas quebradas e outras sequelas físicas e psicológicas. As imagens eram parte das evidências de um processo conduzido por Tomer-Yerushalmi desde julho de 2024. Cinco dos militares flagrados pelo vídeo estão presos graças ao trabalho dela como procuradora militar, um dos poucos exemplos conhecidos de punição imposta por autoridades israelenses aos crimes de guerra cometidos por seus próprios soldados.
Tomer-Yerushalmi caiu, no entanto, em desgraça após ter repassado indevidamente as imagens a uma emissora local chamada Canal 12. No vídeo, um grupo de carcereiros cercam o prisioneiro palestino com escudos, enquanto outros o agridem. O trecho é curto e a imagem tem baixa definição, mas o escritório de Tomer-Yerushalmi, responsável por formular a acusação, assegura que este é o registro exato do momento no qual foram feitos os ferimentos mais tarde diagnosticados por médicos da unidade prisional.
Ao vazar um vídeo confidencial, parte das evidências judiciais colhidas ao longo do processo, a procuradora esperava provar à opinião pública israelense de que estava certa ao mandar prender os cinco militares envolvidos. A atitude de Tomer-Yerushalmi foi uma reposta imprudente à enorme pressão de integrantes do gabinete do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e outros políticos de extrema-direita, interessados em inocentar os militares. Tomer-Yerushalmi é a primeira mulher a ocupar o posto de procuradora-geral militar na história de Israel. Agora, foi destituída do cargo e levada para uma unidade prisional militar na região central de Israel, onde são mantidos muitos dos soldados que ela mesma levou à prisão ao longo dos quatro anos em que exerceu essa função correcional.
O empalamento do prisioneiro palestino, que deu origem ao escândalo, ocorreu na prisão de Sde Teiman, perto de Bersebá, a maior cidade do Deserto de Neguev, no sul de Israel, a poucos quilômetros da Faixa de Gaza. Para lá foram levados os principais suspeitos de envolvimento nos ataques de 7 de outubro de 2023. Foi de lá também que, em outubro deste ano, saíram muitos dos prisioneiros trocados por reféns palestinos, como parte do acordo de cessar-fogo com o Hamas, costurado pelo governo dos Estados Unidos. Um desses prisioneiros libertados foi justamente a vítima que aparece no vídeo. A decisão de devolvê-lo à Faixa de Gaza foi eminentemente política, e contribuiu para dificultar a condenação dos envolvidos, uma vez que ele dificilmente aceitará voltar a Israel para depor.
Sde Teiman é uma espécie de Guantánamo israelense. Assim como ocorreu na prisão que os norte-americanos criaram em Cuba para receber os suspeitos de envolvimento com a então chamada “guerra ao terror”, seu similar, no Deserto de Neguev, foi convertido em um desses lugares nos quais sabidamente são cometidos abusos, mas onde a documentação das ocorrências é praticamente impossível. Ao longo do último ano, Tomer-Yerushalmi e outros advogados militares que fazem parte de seu gabinete conseguiram recolher laudos médicos e testemunhos de vítimas para fazer avançar as investigações, mas tudo caiu por terra com a prisão dela.
A promotora estava sob intensa pressão dos extremistas de direita
A impossibilidade de responsabilização dos militares mostrou-se clara desde o início. Em julho do ano passado, assim que o caso foi descoberto, a procuradoria militar mandou que uma unidade a serviço do órgão correcional entrasse em Sde Teiman e capturasse os envolvidos no caso de empalamento. Mas, apesar de portar mandado judicial e de cumprir uma função legal, com respaldo da Justiça Militar, a unidade foi repelida, tanto por integrantes da chamada Unidade 100 ou Força 100, que comanda o serviço de carceragem desses presos, quanto por seus parentes e por políticos de extrema-direita, que acorreram em turba ao local, conclamados por lives e posts na internet.
A turba se interpôs entre os captores e os capturados, provocando uma rebelião militar claramente insubordinada, com enorme apoio popular. A presença de parlamentares extremistas tornou-se mais um elemento de intimidação contra quem buscava cumprir a ordem emanada do gabinete de Tomer-Yerushalmi. Ainda assim, cinco dos envolvidos foram levados para uma carceragem militar, onde novo tumulto foi produzido, sem que a polícia israelense interviesse.
Esse clima de rechaço violento ao trabalho da procuradora se manteve ao longo de todo o ano, até que ela tomou a decisão de vazar as imagens que comprovariam os abusos. A decisão violou as normas do devido processo legal e deu à defesa dos envolvidos o argumento necessário para tentar anular todo o processo.
Depois que a reportagem foi levada ao ar, Tomer-Yerushalmi desapareceu por várias horas, levantando suspeitas de que pudesse ter sido sequestrada ou que tivesse se suicidado. Seu carro foi encontrado numa praia e o celular desapareceu. Ela não atendia chamadas de funcionários de seu próprio escritório, nem de parentes. Finalmente, de noite, foi capturada e levada à prisão, onde foi submetida a uma avaliação psiquiátrica.
A reviravolta ocorre em um momento no qual também o procurador-geral do Tribunal Penal Internacional, o britânico Karim Khan, enfrenta denúncias de abuso sexual, depois de ter conseguido a expedição de uma ordem de prisão contra Netanyahu e o ex-ministro da Defesa israelense, Yolav Gallant, por crimes cometidos na Faixa de Gaza. No caso do TPI, as ordens seguem vigentes, mas seu cumprimento depende da colaboração de algum Estado que tenha a disposição de capturar e deportar Netanyahu para Haia, caso receba uma visita oficial do primeiro-ministro israelense. No caso de Tomer-Yerushalmi, os cinco militares acusados continuam presos, mas suas defesas pediram a nulidade do processo, com amplo respaldo político e popular. •
Publicado na edição n° 1387 de CartaCapital, em 12 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A culpa é da mensageira’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.



