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“A crise dos refugiados na Europa apenas mudou de forma”

Autor de “Refugiados em Idomeni”, pesquisador Gabriel Bonis comenta o caos migratório em território europeu

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No início de 2016, Idomeni, um vilarejo grego de 150 habitantes, passou a conviver com 14 mil novos residentes: eram homens, mulheres e crianças refugiadas, levadas a abandonar suas casas devido a guerras e perseguições e a face mais visível para o Ocidente da pior crise de refugiados na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.

Lá, na fronteira da Grécia com a Macedônia, os refugiados enfrentavam temperaturas congelantes, humilhações, desconfianças e incertezas acerca do futuro. 

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O pesquisador brasileiro e especialista em direito para refugiados Gabriel Bonis viu a situação de perto. Durante sete meses, atuou junto ao campo de refugiados de Idomeni, onde coletou histórias reais dessas pessoas, relatadas agora no livro Refugiados em Idomeni – Um relato de um mundo em conflito, que chega às livrarias no dia 8 pela editora Hedra.

Bonis, que é mestre em Relações Internacionais pela Queen Mary, Universidade de Londres, e colaborador de CartaCapital, também coordena um programa de assistência legal em Salônica que ajuda refugiados a se prepararem para suas entrevistas de asilo com as autoridades gregas. 

Em entrevista à CartaCapital, Bonis falou sobre o epicentro grego na crise dos refugiados e as reações europeias à crise. Confira: 

CartaCapital: A Grécia foi um ponto focal da crise migratória na Europa. Como você resumiria o que observou durante a pesquisa para o livro?
Gabriel Bonis: O governo grego teve muitas dificuldades para lidar com o influxo intenso de refugiados, mas houve uma mobilização social bem intensa em Salônica, Atenas e em diversas ilhas para tentar cobrir o vácuo em suporte deixado pelas autoridades. Foi muito interessante observar movimentos com diferentes inclinações políticas e ideológicas trabalhando de forma independente para ajudar refugiados.

No entanto, essas iniciativas não tinham estrutura para cobrir todas as necessidades dos refugiados. Era preciso uma atuação mais intensa de um governo debilitado por anos de austeridade.

Na ausência de Atenas, milhares de pessoas acabaram em acomodações inadequadas (alguns morreram de hipotermia durante o inverno em campos administrados pelo governo), expostos à criminalidade e sem acesso a saúde e educação.

A União Europeia também contribuiu para esse cenário, uma vez que o bloco preferiu, em grande parte, injetar dinheiro em ONGs e no governo ao invés de realizar esforços mais diretos para construir, por exemplo, centros de recepção adequados ou pressionar os países do bloco a acelerarem a realocação de refugiados da Grécia.

CC: Neste momento pode-se dizer que a crise arrefeceu? A que você atribui isso?
GB: A quantidade de refugiados entrando na Grécia caiu drasticamente desde o acordo entre a União Europeia e a Turquia, que controla a quantidade de pessoas chegando às ilhas grega pelo Mar Egeu. Em 2017, pouco mais de 10 mil refugiados chegaram a Grécia vindos da Turquia por essa rota, contra os mais de 850 mil registrados em 2015. Neste sentido, é possível dizer que o acordo arrefeceu a crise em relação ao número de entrada de refugiados na Grécia.

Na prática, contudo, a crise apenas mudou de forma. Milhares de refugiados que ficaram presos no país após o fechamento da rota dos Bálcãs em março de 2016, ainda aguardam realocação para outros países da UE. Muitos deles seguem vivendo em campos improvisados pelo governo, vulneráveis à exploração sexual e exclusão social.

Milhares de refugiados que não se qualificam para serem movidos para outros países da UE, aguardam longos períodos em campos com péssimas condições de vida nas ilhas sem poderem sair de lá. Há um impacto psicológico gigante nesta parcela dos refugiados. Casos de tentativas de suicídio nas ilhas são comuns, assim como protestos reprimidos com intensa violência policial.

CC: Países como a Turquia ou o Líbano receberam tantos ou mais refugiados do que a Europa inteira. Por que a crise na Europa teve muito mais repercussão?
GB: Quando a real proporção da crise atingiu à Europa em 2015, com mais de um milhão de refugiados entrando no continente via Mar Mediterrâneo, a mídia europeia passou a cobrir o tema de forma extensiva in loco. A crise ganhou grande destaque na imprensa porque ocorria “no quintal” de casa e porque aquele fluxo de refugiados não era visto na região desde as guerras dos Bálcãs nos anos 1990. Neste ponto, era uma novidade em um continente que não costuma enfrentar situações como aquela.

Em termos logísticos, também era mais simples (e barato) enviar jornalistas e equipamentos para Grécia e Itália do que para o Líbano ou a Turquia. É preciso considerar ainda que parte relevante da mídia europeia, como The Guardian, BBC e Der Spiegel, tem alcance global. Isso ajudou a crise na Europa a ter mais repercussão internacional. Além disso, fatos impactantes que ocorram na Europa/América do Norte tendem a receber maior destaque na imprensa de países ocidentais do que acontecimentos semelhantes em outros locais.

É uma lógica semelhante à repercussão dos atentados em Paris em novembro de 2016 versus o ataque terrorista no dia anterior em Beirute (Líbano). Ambos foram conduzidos pelo Estado Islâmico e mataram dezenas de civis, mas o primeiro obteve imensa exposição global, gerou mensagens de solidariedade à França em redes sociais e por parte de políticos relevantes. O ataque no Líbano ficou relegado a uma cobertura secundária, cercado por uma percepção de não haver nada inédito em um ataque terrorista no Oriente Médio.

CC: Muitos especialistas e políticos, como o líder trabalhista britânico Jeremy Corbyn, atribuem a crise ao menos parcialmente à política externa dos EUA e da Europa. Você sente que os cidadãos europeus têm essa percepção das ações de seus próprios governos?
GB: Essa percepção varia bastante conforme a visão de mundo de cada indivíduo. Na pesquisa de campo que conduzi durante sete meses com grupos de civis que estavam ajudando refugiados em Salônica e Idomeni, havia uma compreensão bem difundida de que a União Europeia tinha uma parcela de culpa na situação política atual enfrentada por países como Afeganistão, Iraque e Síria, todos os quais sofreram intervenções diretas de nações ocidentais em períodos recentes.

A maior parte da minha amostra de pesquisa era crítica a políticas externas intervencionistas. Logo, era esperado deles este tipo de argumentação. No entanto, analisando de uma forma mais geral, inclusive por meio de comentários em redes sociais, diria que o “europeu médio” não enxerga tão claramente uma correlação entre a crise dos refugiados e a política externa das potências ocidentais como apontado por Corbyn.

CC: Muitos governos europeus tiveram reações abertamente hostis aos refugiados. A que você atribui essas reações?
GB: A Europa recebeu uma fração do número de refugiados que Líbano (onde 1 a cada 5 habitantes era um refugiado em 2016) e Turquia (2,9 milhões de refugiados). Mas a velocidade com que mais de 1 milhão de refugiados chegaram no continente entre 2015 e 2016 assustou diversos países, assim como parte da população europeia.

O cenário era propício para movimentos anti-migratórios e de setores de extrema-direita, que prosperaram rapidamente com a retórica de uma “invasão de imigrantes econômicos” e de muçulmanos que seriam “uma ameaça à civilização europeia”, como disse Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria. Ele não está sozinho neste discurso nacionalista e xenófobo.

Robert Fico, premier da Eslovaquia, se recusou a aceitar refugiados muçulmanos em seu país porque eles iriam “mudar as características e a cultura” local. Fico ainda disse que o “Islã não tem lugar” na Eslovaquia e que o país não aceitaria muçulmanos por não ter mesquitas. Polônia e República Tcheca também não querem aceitar as cotas de refugidos realocados de Grécia e Italia impostas pelas UE.

Bruxelas decidiu abrir uma ação legal contra esses quatro países, todos com governos conservadores ou de extrema-direita por recusarem as cotas. Os líderes destes países usam uma retórica de proteger suas identidades, mas Eslovaquia, por exemplo, teria que receber cerca de 2,2 mil refugiados. Em um país de 5,6 milhões de pessoas, o que mudaria culturalmente?

CC: Como os refugiados entendiam as reações dos Estados europeus à chegada deles? Estavam preparados para isso?
GB: É possível dividir as reações dos refugiados em relação à recepção que tiveram na Europa em dois momentos: 1) pré-fechamento da rota dos Bálcãs; 2) após o fechamento da rota dos Bálcãs e o acordo UE-Turquia. No primeiro momento, quando ainda era possível partir da Grécia para países mais ricos do norte do continente, era evidente em conversas em Idomeni a gratidão de refugiados pela forma como Alemanha e Suécia, entre outros países, se dispuseram a ajudá-los.

Essa percepção mudou completamente no segundo período, quando países do norte fecharam suas fronteiras para refugiados vindos da Grécia pela rota dos Bálcãs, deixando-os presos em território grego. A partir de então, havia em Idomeni muita frustração e confusão por parte dos refugiados, que não entendiam o porquê de não poderem seguir viagem.

É difícil dizer se eles estavam preparados para o que aconteceu no segundo período, mas na fronteira com a Macedônia muitos sentiam-se humilhados pelas péssimas condições do campo e por dependerem de ajuda de humanitária para se alimentarem.

CC: Pensando no futuro, como vê as possibilidades de integração desses refugiados na Europa?
GB: A integração depende em parte de cada pessoa, que precisa sair de sua zona de conforto para aprender a língua local e para diversificar suas conexões, procurando manter contato não só com a sua comunidade. Por outro lado, o país hospedeiro também tem um papel importante neste processo.

As autoridades precisam ajudar na adaptação com medidas que são muitas vezes simples: informar os refugiados onde podem ter aulas de idioma (que nem precisam ser pagas diretamente pelo governo, pois inúmeras ONGs oferecem estes cursos), colocar refugiados em contato com organizações que possam oferecer suporte psicossocial, oferecer cursos profissionalizantes ou ajudar no processo de validação de diplomas daqueles que já possuem qualificação.

É importante também ajudá-los a navegar no mercado de trabalho. Tudo isso pode ser feito com certa facilidade. É importante também que o país hospedeiro possa oferecer algum tipo de suporte financeiro e/ou acomodação por um período para que a integração seja facilitada.

Outro ponto crucial é combater a xenofobia e educar a população para que não perceba refugiados como uma ameaça. E esse é um processo mais demorado. Em Salônica, por exemplo, houve diversos casos de escolas que se recusaram a receber crianças refugiadas por pressão dos pais dos alunos. Esse tipo de comportamento dificulta a integração e precisa ser combatido.

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