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A consulta popular não deve servir para legitimar o que é ilegal

O professor da PUC Luiz G. A. Conci analisa os referendos para a autonomização da Escócia, da Catalunha e da Criméia

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A participação direta da cidadania em processos decisórios tem sido, desde o começo do século XX, fator de satisfação e apreensão entre os analistas jurídicos e políticos. Seja antecipando (plebiscitos), seja sucedendo (referendos) decisões parlamentares ou de outro poder, importa perceber que há uma vinculação entre decisões do povo soberano e o seu devido respeito pelas autoridades estatais. O modelo representativo cede ao elemento participativo.

Para facilitar, chamarei de manifestação plebiscitária tais decisões populares, independentemente do momento.

A satisfação decorre do reforço da dimensão democrática da decisão que não somente eleva a  vontade popular ao grau mais alto de importância como também melhora o debate público das ideias em confronto, trazendo ao processo decisório o povo como ator e não como mero espectador. Diminui a importância dos seus representantes e, além disso, os ruídos provenientes do risco de parlamentos desapegados da representação ou da vontade popular e próximos de interesses particulares ou de grupos de pressão que conseguem capturar seu apoio.

Mas há um outro lado nas manifestações plebiscitárias. É sensível o risco do desvirtuamento do processo por forças manipuladores que, nesse momento, utilizam argumentos variados, de apelo emocional ou de outras formas de manipulação, como elementos racistas, xenófobos, religiosos ou baseados em outros valores que não correspondem ao devido processo de abertura do debate limpo e fluido. Governos populistas também gostam de ver aprovados seus interesses como modo de aniquilar seus opositores (minorias).

Essa introdução tem somente por objetivo discutir, ainda que brevemente, os três processos plebiscitários que, nos últimos meses, vêm tomando o cenário europeu e internacional: a autonomização da Escócia, com relação ao Reino Unido; da Catalunha, à Espanha; da Criméia, da Ucrânia.

No caso da Escócia, após 300 anos, e com a aprovação do Parlamento do Reino Unido, decidirão os escoceses se pretendem se tornar um Estado nacional independente. Trata-se de uma consulta, diferentemente das duas outras, que detém legitimidade jurídica e política. O povo escocês vai decidir o seu próprio futuro de acordo com as decisões que tomaram no passado. Trata-se de um momento importante para a democracia. Para a política, o receio dos conservadores no poder, no caso inglês, é um combustível para a separação, ainda que, desde 1999, o governo inglês tenha devolvido algumas competências à Escócia. No que se refere a aderir à União Europeia, este parece um caminho natural ao país – tirando o risco político de uma possível contrariedade espanhola, que se oporá a casos que possam fortalecer os interesses separatistas bascos e catalães.

O caso espanhol é um pouco mais difícil. A Catalunha, comunidade autônoma segundo a constituição do Reino da Espanha, sem o respaldo das Cortes Gerais (parlamento espanhol), ou seja, em desacordo com a Constituição da Espanha, decidiu que realizará o seu processo plebiscitário, ainda que sob o risco de ter uma decisão contrária do titubeante tribunal constitucional espanhol, arredio a afirmar sua competência para análise do caso. Arthur Más, o presidente da Generalitat catalã, não tem encontrado respaldo interno nem internacional fora da sua região – mandou cartas a líderes políticos importantes na Europa sem resposta alguma.

Caso ocorra a decisão favorável à separação, haverá um risco grande não somente para as relações internacionais do novo Estado, tendo em vista que dependerá da própria Espanha para eventualmente entrar na União Europeia, o que dificultará demais o trabalho de seus líderes. O risco de isolamento é bastante grande.  O processo, nesse sentido, é patentemente inconstitucional.

A situação da Criméia é diferente das duas anteriores. Primeiramente, não está incrustrada na parte ocidental da Europa, berço da União Europeia, e não faz parte de um Estado tradicional, daqueles que surgiram como referências de Estados-nações soberanos com o fim da idade média. Deriva de um Estado nacional recente, de uma região pouco estável, que não se decidiu de que Europa quer fazer parte. Naquela região, recentes situações derivadas do desmantelamento da antiga URSS ainda são fonte de importantes precedentes judiciais sobre os Estados nacionais surgidos de conflitos.

O precedente de Kosovo é levantado pelos russos de modo reiterado. Kosovo se tornou um Estado nacional após nove anos de intervenção (ONU e OTAN). A ONU, mediante a resolução 1244, havia desenhado a sua administração. Não houve intervenção internacional na Crimeia.

Há diferenças e semelhanças entre os dois casos. Semelhanças porque nos dois casos eram províncias de Estados que os precederam e, nas duas situações, existe a vontade soberana de se separar. E contam com uma maioria étnica distinta da dominante no país a que pertenciam. As duas tiveram, na projeção do tempo, uma redução de sua autonomia. Nas duas, a secessão viola o direito interno do Estado de origem e nenhuma das duas recebeu condenação do Conselho de Segurança da ONU.

Todavia, o ponto central é o seguinte: não existiu, no caso da Crimeia, violência ou ação perpetrada de modo massivo contra uma minoria étnica. Não houve extermínio em massa. Não houve estupros em massa com a intenção deliberada de violar padrões genéticos. E tudo isso foi praticado por agentes sérvios.

O caso de Kosovo é diferente. Lá, a Corte Internacional de Justiça, em 2010, após uma consulta por parte da Assembleia Geral da ONU, decidiu pela não ilegalidade da independência. Uma Corte, pouco segura, decidiu que se tratava de um caso especial. Ou seja, não quis formatar um precedente para o futuro.

Nada disso ocorreu na Crimeia. Um processo muito rápido levou à sua independência. O que legitimaria uma violação ao seu direito interno seria somente a prática de crimes de direitos humanos praticados por agentes de outros Estados ou por maiorias políticas ou étnicas de seu país, sem o controle de suas instituições.

Claro que podemos criticar os limites do direito internacional em casos como o que analisamos.  A comunidade internacional, aos poucos, ainda que ilegal a decisão, vai lhe dando espaço, reconhecendo sua personalidade jurídica. A negociação e os costumes são fontes importantes nessa seara.

De todo o referido, parece-nos que o caso escocês, por seguir o direito interno, não tem os problemas dos dois outros, que merecem um pouco mais de reflexão e são ilegais. Em que pese consultas populares, o povo erra. E tem direito e instituições para dizerem isso.

Por isso, mais uma vez é a proteção da pessoa humana o principal argumento, o fiel da balança para separar os casos. A consulta popular não deve servir para legitimar o que é ilegal.

 

Luiz Guilherme Arcaro Conci, doutor em Direito Constitucional, é professor e coordenador acadêmico do curso de Pós Graduação Lato Sensu em Direito Constitucional da PUC-SP e professor titular da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É presidente da Coordenação do Sistema Internacional de Proteção de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB.

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