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A complicada relação do Brics com o Ocidente

Grupo de países emergentes cresce e se torna cada vez mais a voz do Sul Global. Analistas avaliam que o Ocidente deveria cooperar, e não brigar, com o Brics

Lula na foto oficial dos Brics, na África do Sul. Da esquerda para a direita: Lula (Brasil); Xi Jinping (China); Cyril Ramaphosa (África do Sul); Narendra Modi (Índia); e o representante de Putin, Sergei Lavrov (Rússia). Foto: GIANLUIGI GUERCIA / POOL / AFP
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É um revés que o Brics vai conseguir superar: a Argentina não entrará para a aliança em janeiro. Mesmo assim, o grupo terá cinco novos países a partir de 2024: as três potências do setor petrolífero Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irã e também o Egito e a Etiópia.

A ampliação consolida o Brics no papel de voz do chamado Sul Global e dá mais peso ao grupo na política internacional. A ampliação se dará durante a presidência russa do bloco e, na cúpula de outubro, quando o presidente Vladimir Putin receber os demais líderes na cidade de Kazan, a foto oficial terá o dobro de participantes.

É impressionante a evolução pela qual o grupo dos países do Brics passou desde que o economista Jim O’Neill, do banco de investimentos Goldman Sachs, criou a sigla, em 2001, para se referir a um grupo de países emergentes de crescimento acelerado que teria um peso cada vez maior na economia mundial.

Em 2009, os quatro países da sigla original Bric – Brasil, Rússia, Índia e China – reuniram-se pela primeira vez. Em 2011, a África do Sul tornou-se o primeiro país africano a entrar para o grupo, que passou a se chamar Brics.

A evolução é ainda mais impressionante se for considerado que, no âmbito do Brics, democracias, como a Índia, o Brasil e a África do Sul, cooperam pragmaticamente com regimes autoritários, como a China e a Rússia, diferenças ideológicas à parte.

Mesmo os combates mortais entre militares indianos e chineses na fronteira disputada entre os dois países, em 2020, não implodiram o Brics.

Nem ocidental nem antiocidental

Os novos membros também trazem consigo enorme potencial de conflitos: Egito e Etiópia se desentendem por causa da água do Nilo; a sunita Arábia Saudita e o xiita Irã são arqui-inimigos e lutam há décadas pela hegemonia no Golfo Pérsico.

O que une todos esses países, na síntese feita pelo cientista político Johannes Plagemann, do centro de estudos alemão Giga, é o desejo de uma ordem mundial menos dominada pelo Ocidente.

Isso não implica rejeição ao Ocidente. Como os membros do Brics só podem tomar decisões por unanimidade, nem China nem Rússia e futuramente nem o Irã podem impor suas posições. E, para a maioria dos países do bloco, deve valer o que o ministro do Exterior da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, falou: “A Índia não é ocidental nem antiocidental”.

Sinal de independência

A adesão ao Brics, como explica o cientista político alemão Günther Maihold, não apenas oferece um novo status na política internacional como também a oportunidade de escapar à visão esquematizada de uma crescente competição geoestratégica que coloca a China e a Rússia de um lado e o Ocidente do outro.

“Com a adesão ao Brics fica claro que não se quer aderir a esse esquema e, em vez disso, quer-se adotar uma posição independente”, diz Maihold, que leciona na Universidade Livre de Berlim.

É como um sinal dessa independência que deve ser entendida a recepção cheia de pompa dada a Putin, no início de dezembro, pelos futuros membros do Brics Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos – apesar da invasão russa da Ucrânia e de um mandado internacional de prisão do Tribunal Penal Internacional (TPI).

Em Abu Dhabi, os anfitriões não apenas deixaram a comitiva do líder do Kremlin percorrer avenidas decoradas com bandeiras russas como aviões de combate pintaram as cores da bandeira russa no céu. Tanta hospitalidade quase fez esquecer que os Emirados Árabes Unidos são aliados dos EUA, que mantêm três bases militares no país.

Vantagens para a Rússia

A presidência do Brics e a possibilidade de orientar tematicamente a cúpula de 2024 oferecem vantagens à Rússia, analisa Plagemann. A primeira é poder demonstrar, dentro da Rússia, que o país não está tão isolado quanto o Ocidente gostaria. Outra é poder contornar o Ocidente e suas sanções econômicas e vender matérias-primas a bons preços.

Já hoje os aliados de países ocidentais que fazem parte do Brics praticamente ignoram as sanções à Rússia. Em parte elas são até mesmo entendidas como sinal de alerta: as penas impostas à Rússia e ao Irã, o congelamento de reservas em dinheiro e a exclusão do sistema internacional de pagamentos Swift deram força à busca por alternativas ao sistema financeiro dominado pelos EUA.

Uma alternativa real é difícil de ser construída e demanda tempo, mas os Emirados Árabes Unidos, por exemplo, permitem que Índia e China deixem o dólar de lado e paguem com moeda própria suas aquisições de gás e petróleo.

E há ainda o Novo Banco de Desenvolvimento, também conhecido como o banco de desenvolvimento do Brics, com sede em Xangai, na China, e presidido pela ex-presidente Dilma Rousseff.

A adesão de Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos pode significar um aumento de capital para o banco. A instituição permite, aos países-membros, obter empréstimos para projetos nacionais de desenvolvimento ou também em caso de endividamento público “sem estar atrelado às típicas condições impostas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI)”, explica Maihold.

Interesses em vez de valores

Plagemann prevê uma ascensão internacional do Sul Global e a consequente perda de influência do Ocidente. “Isso significa que vai se dar menos valor a concordâncias de caráter ideológico, à promoção da democracia, aos direitos humanos e assim por diante e, em vez disso, todos os envolvidos vão se concentrar mais em querer implementar os próprios interesses.”

Maihold concorda. “O que a ministra alemã do Exterior diz em todo o mundo, que a comunhão de valores é a base para a cooperação, não é visto como base”, afirma. “O que o Ocidente tenta apresentar como uma ordem regrada é uma sobre a qual os membros do Brics dizem: ‘Nós não criamos essas regras. E não há razão para aderirmos ou estarmos sujeitos a esse conjunto de regras’.”

Plagemann diz que é preciso encarar o Brics como um parceiro em áreas em que a cooperação é possível. “Se as grandes instituições internacionais, como as Nações Unidas, estão se tornando cada vez menos capazes de agir, então os grupos e instituições devem ao menos serem capazes de ter um potencial de cooperação. Não faz sentido construir uma oposição”, argumenta.

Maihold recentemente apresentou uma sugestão de que como o Ocidente e o Brics podem dialogar: por meio de fóruns de negociadores do G7 e do Brics. Esses nem mesmo teriam de ser públicos e poderiam se ocupar de setores menos afetados pela concorrência geopolítica, como meio ambiente e política global de saúde.

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