Mundo
A bela e a fera
Sheynnis Palacios, Miss Universo, é alçada à improvável posição de antagonista de Daniel Ortega


A recente eleição de Sheynnis Palacios como Miss Universo foi uma grande notícia para a Nicarágua. Multidões alegres saíram às ruas de Manágua pela primeira vez desde os protestos em massa de 2018, que foram reprimidos com força letal. O regime político do país, paranoico com qualquer sinal de dissidência, inicialmente felicitou Palacios, mas desde então reprimiu as comemorações, até porque a própria miss participou das manifestações de 2018, e os opositores do regime a consideraram um símbolo de esperança e desafio.
Palacios, de 23 anos, tornou-se a primeira Miss Universo da América Central, na edição deste ano do concurso, realizada em El Salvador em 18 de novembro. “Foi uma surpresa, e provocou manifestações espontâneas de alegria no país”, disse Elvira Cuadra, socióloga nicaraguense que vive exilada na Costa Rica.
A miss vem de uma família de baixa renda que vendeu bolinhos fritos, ou buñuelos, para poder estudar na universidade, e sua história pareceu se conectar a muitos nicaraguenses. O mesmo aconteceu com sua participação nos protestos de 2018, que se tornou conhecida por todos depois que fotos suas na época viralizaram antes do concurso de beleza.
Aqueles protestos visavam derrubar o presidente Daniel Ortega, antigo herói revolucionário de 78 anos que ajudou a pôr fim à brutal ditadura de Anastasio Somoza, que durou quatro décadas. Mas, desde então, Ortega transformou a Nicarágua num Estado autoritário durante seu último mandato como presidente, a partir de 2007. Os protestos duraram três meses antes de serem esmagados, com mais de 320 mortos.
Alguns nicaraguenses que assistiram à cerimônia do Miss Universo viram o traje de Palacios, um vestido branco com capa azul, como uma referência à bandeira nacional, que foi proibida a partir de 2018. A própria Palacios não disse nada abertamente político durante a cerimônia. Citou a feminista britânica do século XVIII, Mary Wollstonecraft, como inspiração antes de dedicar sua coroa às “garotas do mundo, à garota dentro de mim… e aos mais de 6 milhões de habitantes do meu país”.
A vitória provocou uma rara manifestação de alegria num país que nos últimos anos tem visto poucos motivos para comemorar. “Desde 2018, a Nicarágua vive em um Estado policial”, disse Cuadra. “Ultimamente, nem mesmo reuniões religiosas têm sido permitidas. Mas, quando Sheynnis venceu, as pessoas saíram às ruas com suas bandeiras nacionais, cantando o hino nacional.”
O regime parecia inseguro sobre como lidar com Palacios e com o entusiasmo em torno de sua vitória. Na preparação para a competição, a mídia oficial a desprezou. Uma apresentadora disse que ela era mais adequada para ser “Senhorita Buñuelos”.
As comemorações do título da modelo foram reprimidas com violência
Quando Palacios venceu, o governo divulgou uma mensagem parabenizando-a, mas sem a habitual assinatura de Ortega ou de Rosario Murillo, sua mulher e vice-presidente do país. Murillo, entretanto, fez um pronunciamento sobre “conspiradores golpistas” que planejavam “provocações fabricadas” sob o pretexto de celebrar o Miss Universo. O regime deteve uma usuária do aplicativo TikTok que defendia Palacios contra as críticas oficiais e obrigou dois artistas a apagar um mural que tinham começado em homenagem a ela na cidade de Estelí.
Não está claro se Palacios terá permissão para voltar à Nicarágua, visto que o regime proibiu o retorno da diretora da franquia Miss Nicarágua, Karen Celebertti, que também viajou para El Salvador. O marido e o filho de Celebertti também foram relatados como desaparecidos na segunda-feira 27. “O governo se mostrou nervoso”, disse Juan Pappier, vice-diretor para as Américas da Human Rights Watch. “Não por fraqueza, mas por paranoia. Eles têm medo de qualquer coisa que não esteja totalmente alinhada com eles.”
Desde a revolta esmagada de 2018, o movimento da Nicarágua na direção do autoritarismo se acelerou. “Vimos uma demolição total das liberdades civis”, disse Pappier. “Mais de 300 nicaraguenses perderam a nacionalidade. Metade das ONGs que existiam foi encerrada. E ainda há mais de 80 presos políticos atrás das grades.”
A Igreja Católica, que Ortega acusou de promover um golpe de Estado em 2018, também foi perseguida. A Universidade Centro-Americana, instituição jesuíta onde Palacios estudou e que é descrita pelo governo como “um centro de terrorismo”, foi recentemente fechada. Rolando Álvarez, o bispo de Matagalpa, que se recusou a ser deportado para os Estados Unidos juntamente com outros 222 presos políticos em fevereiro, foi condenado a 26 anos de prisão. “Não creio que exista hoje algo que possamos chamar de vida cívica ou pública na Nicarágua”, disse Pappier. “A repressão é absoluta.”
Desde 2018, ao menos 600 mil nicaraguenses deixaram o país, principalmente para os Estados Unidos e a Costa Rica. No início deste mês, a Nicarágua concluiu sua retirada da Organização dos Estados Americanos, após refutar as críticas por numerosas violações dos direitos humanos. “Em termos de repressão sistemática e isolamento da comunidade internacional, esta é a Coreia do Norte do nosso continente”, disse Pappier. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1289 de CartaCapital, em 13 de dezembro de 2023.
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