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A batata-quente da CIA: neutralizar o crescente número de agentes duplos em suas fileiras

Concentrada na ‘Guerra ao Terror’, a agência deixou um vácuo em outras áreas e tem dificuldade para lidar com os desafios do mundo moderno

Ultrapassada? Símbolo da Guerra Fria, a CIA sofre para se adaptar ao mundo moderno. (FOTO: Saul Loeb/AFP)
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A Agência Central de Inteligência está em apuros. No início de outubro, a cúpula norte-americana de contra-espionagem enviou um alerta a todas as suas estações e bases espalhadas pelo mundo: a CIA perdeu nos últimos tempos um número crescente e significativo de informantes recrutados para espionar para os Estados Unidos em outros países.

O cabograma ultrassecreto e extremamente incomum deixou claro que espiões da agência tinham sido mortos, capturados ou comprometidos por serviços secretos rivais. O acesso da mídia ao conteúdo do informe uma semana após seu envio, ­aliás, só fez comprovar que a inteligência norte-americana de fato tem um problema e tanto nas mãos.

O texto deixou claro que este não é um problema novo, mas que precisa ser resolvido com urgência. Enviado aos oficiais que comandam informantes, desenvolvem fontes e recrutam os agentes, a mensagem dizia que era preciso se concentrar no escopo do problema – e é exatamente o alvo da mensagem que torna o comunicado ainda mais explosivo.

Os chamados informantes comprometidos, mais conhecidos como agentes duplos, compõem a maior parte dos casos. São espiões que ao longo de anos foram perdidos não porque estavam presos ou foram executados, mas porque se encaixavam na categoria mais complicada: agentes que ainda se comunicam com os Estados Unidos, mas que a CIA não tem certeza se mudaram de lado e, portanto, mais do que peças inúteis, são uma amea­ça real para a segurança nacional.

A agência tem dificuldade para lidar com os desafios do mundo moderno

Os Estados Unidos dependem da CIA e de suas fontes humanas para coletar informações e evitar uma guerra ou dar início a um conflito, suavizar relações internacionais ou enrijecer posturas de viés econômico e até decisões políticas frente a outros países. Fato é que se há algo sistematicamente errado e a agência tem perdido sua habilidade de recrutar espiões em todo o mundo, este é bem mais do que um problema de remanejamento de pessoal, trata-se de perder uma vantagem histórica que por muito tempo esteve em suas mãos.

De acordo com Mark Zaid, advogado especialista em segurança nacional, não há dúvida de que a perda de bens, principalmente humanos, é motivo de grande preocupação. “Também há sempre preocupações com relação a vazamentos e traidores, mas o mais importante é o medo de hackers de computador sofisticados. Isso também representa sérios riscos para redes inteiras e de exposição em um nível de magnitude com que os espiões do passado só podiam sonhar.”

Uma crítica à CIA, diz Zaid, é se o governo norte-americano abandonou os ativos anteriores e falhou em protegê-los. “Nós os deixamos para trás? Que mensagem isso envia para aqueles que podem estar dispostos a arriscar sua segurança e trair seu próprio país para trabalhar para o nosso? Quando quase todo mundo agora tem algum tipo de computador e acesso à internet, o que eles aprendem com as notícias sobre a segurança que os Estados Unidos fornecerão aos nossos informantes estrangeiros? Vamos recompensá-los? Protegê-los? Ou deixá-los para trás?”.

Aliás, se não há dúvidas de que a agência de alguma forma negligenciou seus informantes, também é certo que ao menos outros três fatores são responsáveis por essa transformação no panorama da espionagem norte-americana. Ao longo das décadas houve uma mudança drástica que tornou a vida do espião no mundo moderno muito difícil.

As novas tecnologias, comunicação, inteligência artificial, reconhecimento facial, câmeras por toda parte, tudo se tornou um grande divisor de águas e um imensurável complicador. Não é mais possível ter quatro passaportes e desaparecer sem deixar rastros porque quando você vai para um país estrangeiro até sua retina pode ser escaneada. E, bem, ainda não inventaram a possibilidade de se ter uma segunda retina na bagagem.

Falha. Agentes da CIA foram enganados por militantes da Al Qaeda. (FOTO: Josh Ives/U.S.Navy)

Zaid, que frequentemente representa ex-funcionários federais, especialmente oficiais de inteligência e militares, destaca que o mundo da espionagem de hoje não é mais o mesmo que conhecemos na Guerra Fria e antes dela, mas isso não significa também que a arte de espionar está perdida.

“A tecnologia tornou mais difícil administrar as operações em todo o mundo. A maioria pode entender facilmente como estamos vinculados aos nossos telefones celulares e como é simples rastrear nosso meio pela tecnologia GPS. Além disso, a tecnologia de vigilância melhorou tanto e custa tão pouco que é virtualmente impossível se mover sem ser detectado. Mas nem todos os países do mundo são tão sofisticados no que diz respeito à tecnologia. Ainda existem lacunas. E, é claro, as principais agências de espionagem se orgulham de criar contratecnologia que ajudaria os espiões a evitar a detecção, mesmo em países que possuem equipamentos de ponta.”

O desenvolvimento de serviços de contra-inteligência em lugares que nem sempre foram pensados como os melhores serviços de espionagem é outro fator importante. O Irã e o Paquistão avançaram a ponto de assinarem hoje algumas das melhores operações de contra-espionagem no mundo.

Outro exemplo clássico, frequentemente citado por ex-funcionários da CIA, é de quando em 2009 a agência recrutava um médico jordaniano para se infiltrar na Al Qaeda a fim de coletar informações e trazê-las de volta aos Estados Unidos. A equipe norte-americana conseguiu que aquele médico fosse à base secreta que a CIA operava no acampamento Chapman, em Khost, no Afeganistão. O problema é que eles estavam tão ansiosos para encontrar uma fonte, para ouvir o que ele tinha a dizer, que o médico entrou na base sem mesmo passar por todas as verificações de segurança. Tarde demais: o mesmo médico havia se tornado um homem-bomba a serviço da Al Qaeda. Na explosão, sete oficiais da agência foram mortos naquele que foi um dos dias mais devastadores da história da espionagem norte-americana.

Concentrada na “Guerra ao Terror”, a CIA deixou um vácuo em outras áreas

À época, a agência estava à caça de Osama Bin Laden e completamente dedicada à chamada “Guerra ao Terror”, terceiro motivo para os percalços atuais da CIA. Depois dos ataques às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, ou seja, nos últimos 20 anos, os espiões dos EUA têm se dedicado quase que exclusivamente ao combate ao terrorismo.

A agência acabou, no entanto, por deixar de lado a expertise que durante a Guerra Fria lutou tanto para conquistar.
A prova mais recente de que a inteligência norte-americana precisa mais do que nunca estar vigilante foram as eleições de 2016 e a interferência russa. Nesse caso, uma das descobertas mais controversas foi a de que o presidente russo Vladimir Putin favoreceu Donald Trump no pleito. E a razão pela qual a CIA soube da manobra deu-se, em parte, graças à espionagem de uma fonte humana. Como Putin não usa telefones celulares e é muito difícil entender suas intenções, restou infiltrar espiões. A agência conseguiu colocar um observador em reuniões com o presidente russo, que ouviu suas conversas com conselheiros no Kremlin. Neste caso, a CIA foi rápida em retirar o agente da Rússia para garantir sua integridade.

Qualquer um que estude a história recente, ressalta Zaid, provavelmente chegará a uma conclusão muito confusa sobre se faz sentido trabalhar com a CIA. “Para mim, isso representa uma perspectiva cada vez mais prejudicial de recrutamento futuro, embora a realidade seja: o dinheiro fala e às vezes isso basta no curto prazo.”

Publicado na edição nº 1180 de CartaCapital, em 21 de outubro de 2021.

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