Mundo
A banalidade da guerra
Passados mais de cem dias da invasão, a destruição continua e não há solução à vista para o conflito


Na estelar carreira de humorista e na acidental presidência da Ucrânia, Volodymyr Zelensky tem atravessado a vida em um palco iluminado, vestido de dourado – ou, ao menos nos últimos três meses, de verde-oliva. Cruzado o rubicão dos cem dias da invasão russa, o midiático herói do Ocidente anda, no entanto, cada vez mais parecido, como na poesia de Orestes Barbosa, com um “palhaço das perdidas ilusões”. Não é culpa de Zelensky nem de sua empenhada e criativa equipe de comunicação. O ucraniano continua a usar o dom da palavra, razão de seu sucesso, para exortar os compatriotas à resistência ou apelar, em discursos cuidadosamente adaptados ao gosto de cada plateia, por mais apoio da Europa e dos Estados Unidos. Assim foi há duas semanas na abertura do Fórum Econômico de Davos, a reunião anual do 1% nos Alpes suíços, ao pedir aos donos do dinheiro, que excluíram os russos do convescote, punições ao país de Vladimir Putin. “Isto é que as sanções devem ser máximas, para que a Rússia, e qualquer outro agressor potencial que queira travar uma guerra brutal contra seu vizinho, saiba claramente as consequências imediatas das suas sanções”, implorou. “Não deveria haver nenhum comércio com a Rússia.” Não ficou claro se a plateia, efusiva nos aplausos, demonstrará a mesma disposição de acatar a proposta. Se necessário, um dos bilionários tem na manga a frase imortalizada pelo consigliere Tom Hagen em O Poderoso Chefão: “Não é nada pessoal, são apenas negócios”.
O problema, para Zelensky e os ucranianos em geral, é a banalização do conflito. Ninguém, ou quase ninguém (permanece a dúvida se Putin se preparou ou não para este cenário), esperava uma guerra tão prolongada. As declarações dos líderes mundiais e, pior, o apoio logístico do Ocidente estão mais esparsos e menos efetivos, apesar das promessas em contrário, e as sanções não surtiram o efeito desejado de insuflar a rebelião dos cidadãos russos contra o Kremlin. Ao contrário. Exceto uma ou outra reprimenda pública a Putin ou as deserções amplamente noticiadas na mídia ocidental, que só confirmam a regra, a população, mesmo submetida a restrições severas, parece respaldar o “czar”, caso se possa confiar nas informações oficiais do governo e dos meios de comunicação russos. Resultado ou não da intensa repressão e da perseguição típica de regimes autoritários, o fato é que os protestos internos contra a guerra diminuíram em número e intensidade. Pesquisas indicam um aumento da popularidade de Putin, como se a “russofobia” espraiada pela Europa nas primeiras semanas do confronto tivesse provocado uma reação patriótica à mesma altura, ambas, ação e reação, descoladas da realidade.
A pressão internacional diminui, assim como o interesse do público. Mas as atrocidades não cessam
A solidariedade europeia ao drama da Ucrânia, por sua vez, converte-se lentamente em um mal-estar, por conta da explosão dos preços dos combustíveis, do risco de uma crise alimentar, da incerteza persistente quanto ao futuro imediato, após dois anos de pandemia, e do fato de a leva de refugiados e deslocados ucranianos espalhada pelo continente, 14 milhões, segundo as Nações Unidas, contribuir para uma alta nos preços dos aluguéis e em nova competição por empregos escassos. Talvez diante do cansaço do público e dos custos altos de um “evento” sem data para acabar, tevês, jornais e rádios desmobilizaram grande parte das equipes enviadas à linha de frente e incluíram a cobertura da invasão na programação rotineira. As histórias de heroísmo, os relatos de sofrimento e superação, amor e glória, foram pouco a pouco substituídas por boletins burocráticos e análises quantitativas (de mortos e destroços). No primeiro fim de semana de junho, o jubileu da persistente Elizabeth II, os 70 anos de reinado, ofuscou as atrocidades cometidas no campo de batalha.
A menor atenção da mídia não significa uma redução da carnificina. A máquina de guerra russa continua ativa e os ucranianos são submetidos a efeitos colaterais não menos terríveis. Os habitantes de Mariupol, a cidade portuária no sudeste do país e um dos principais alvos das tropas invasoras, estão ameaçados pela deterioração das condições sanitárias, além da falta de energia e comida. Nas ruas, o lixo se mistura aos cadáveres em decomposição, enquanto o esgoto avança sobre a água potável, o que aumenta os temores de um surto de cólera. Os russos examinam a possibilidade de decretar uma quarentena, segundo informações de um conselheiro do prefeito Petro Andriushchenko. “A cidade está sendo silenciosamente fechada”, declarou a fonte anônima a jornalistas estrangeiros. “Os corpos estão empilhados. Os soldados não conseguem enterrá-los nem mesmo em valas comuns. Não há capacidade suficiente para isso.” Dois terços dos 420 mil moradores fugiram – 47 mil viram-se obrigados a migrar para terras inimigas, a Bielorrússia, aliada do Kremlin. Enquanto os cadáveres voltam ao pó em Mariupol, “carne fresca” tomba na cruenta batalha pelo controle de Severodonetsk, no coração da região de Donbas, cujo “desejo de autonomia” serviu de pretexto para a incursão militar da Rússia.
Escalada. O preço dos combustíveis dispara e o fornecimento de gás torna-se instável. As sanções ocidentais não abalaram a estratégia de Putin – Imagem: Gazprom, Kremlin Russia e iStockphoto
O que não mudou, desde o primeiro dia da invasão, é o autoengano coletivo dos líderes, que, direta ou indiretamente, detêm o poder de encontrar uma solução para o conflito. Apesar das insistentes bravatas de Putin e do chanceler Sergei Lavrov, a ameaça da Terceira e, provavelmente, Última Guerra Mundial virou piada de salão. A reação moderada do Kremlin à proposta de adesão da Finlândia e da Suécia à Organização do Tratado do Atlântico Norte revela com quem a Rússia fala grosso e com quem fala fino. Do lado de lá, Zelensky não consegue explicar o motivo da resistência em negociar, a não ser pelo prazer de receber os louros das plateias do jet set internacional, ainda que à custa do sofrimento do povo que jurou proteger. Em sua enésima entrevista, desta vez ao Financial Times, o presidente ucraniano criticou o colega francês Emmanuel Macron e revolveu as contumazes platitudes, sem indicar se pretende ou não buscar um fim negociado para a tragédia. “Qualquer guerra deve ser encerrada na mesa de negociações. Foi exatamente assim que aconteceu na história”, afirmou. “Ainda estou resoluto e determinado, estou pronto para negociações diretas com o presidente Putin, se estivermos prontos para discutir seriamente o fim desta guerra.” Em tempo: dias antes, Macron havia dito: “Não devemos humilhar a Rússia, para que, no dia em que os combates cessem, possamos construir uma rampa de saída por meios diplomáticos”.
A aposta na diplomacia de Macron é tão ingênua, ou cínica, quanto a crença no porrete demonstrada por Joe Biden, que, à distância segura, do outro lado do Oceano Atlântico, atiça a fogueira, e pelo chanceler alemão Olaf Scholz, acometido pela insanidade identificada por seu compatriota Albert Einstein (continuar a fazer sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes). Segundo Scholz, as “duras” sanções vão impedir a Rússia de sustentar sua capacidade militar no “longo prazo”. O país, disse, não poderá “participar do progresso do mundo, do progresso econômico e técnico. Isso está se tornando mais claro a cada dia e é um prejuízo significativo”. Faltou combinar com os russos, diria Garrincha. E com os chineses, sentados no camarote. A única voz sensata continua a ecoar das sacadas do Vaticano. No domingo 5, o papa Francisco, durante as celebrações do dia, voltou a pedir bom senso aos envolvidos. “Renovo o meu apelo aos responsáveis das nações: não levem a humanidade à ruína, por favor”, pregou. “Quando se cumpre cem dias da agressão armada na Ucrânia, de novo caiu sobre a humanidade o pesadelo da guerra, que é a negação do sonho de Deus.”
“Não levem a humanidade à ruína”, clama o papa Francisco. Ninguém ouve
A ruína, neste caso, tem sido lenta e cruel. O prolongamento da invasão projeta no horizonte o fantasma de uma crise alimentar sem precedentes. Calcula-se que de 20 milhões a 25 milhões de toneladas de cereais da Ucrânia, um dos maiores produtores de grãos do planeta, estejam retidos no país, seja pela vontade russa, seja pela destruição das estradas, portos e aeroportos, número que poderia chegar a 75 milhões no outono. Os bloqueios às exportações russas, por sua vez, fizeram despencar a oferta de fertilizantes, óleo diesel e outros combustíveis. O resultado, mesmo para quem assiste o conflito a milhares de quilômetros, é o mesmo: alimentos mais caros, falta de produtos nas prateleiras, fome nos países subdesenvolvidos. Em entrevista à rede de tevê Al Jazeera, Luca Russo, especialista da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, alerta: “Podemos ver uma escassez muito séria. Se a guerra perdurar, 2023 pode ser um ano muito, muito perigoso”.
A Rússia, ao contrário do que parece acreditar Scholz, não pagará sozinha a conta do delírio czarista de Putin e da irresponsabilidade das demais lideranças. O melé iniciado pelos Estados Unidos no Oriente Médio, em nome da “Guerra ao Terror”, continua fresco na memória e deveria servir de lição. Invadir o Iraque e o Afeganistão, quebrar a ordem na Líbia e na Síria e bagunçar as relações de equilíbrio na região não tornaram o mundo mais seguro, nem mesmo para os norte-americanos. Longe disso. As “incursões militares especiais” de Washington, para usar o eufemismo do Kremlin, abriram as portas do inferno do Estado Islâmico, da crise dos refugiados e da consequente ascensão do extremismo de direita. George W. Bush e seus sucessores moldaram um mundo pior. Putin fará o mesmo. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A banalidade da guerra “
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