Mundo
A arma da empatia
Os libaneses confiam na capacidade do Hezbollah de reconstruir o Líbano após o avanço de Israel


Quando a família Sabra fugiu dos bombardeios israelenses à cidade de Marjayoun, no sul do Líbano, para os subúrbios do sul de Beirute, em outubro do ano passado, um auxílio mensal em dólares do Hezbollah garantiu que não passassem fome. Quando foram deslocados pela segunda vez, para as montanhas ao redor da capital, por uma onda de ataques israelenses ao sul de Beirute, doações regulares de refeições, pacotes de alimentos e até produtos de limpeza feitas por organizações ligadas ao Hezbollah os mantiveram vivos. “Eles estão tendo um cuidado incrível conosco, mesmo com tudo o que está acontecendo. Eles não nos abandonam”, afirma Hind Sabra, cujo nome foi modificado. Em sua casa vivem 14 refugiados de três famílias, e cada uma delas recebe um benefício mensal de 200 dólares, cerca de 1,1 mil reais, em dinheiro, além de medicamentos com desconto e cestas de alimentos compostas de arroz, feijão, óleo e atum.
Os alimentos, remédios e dinheiro são doados por uma rede de apoio mantida há muito tempo pelo Hezbollah, incluído um banco que floresceu com a crise financeira que dura anos no Líbano, um fundo que cuida das famílias dos mortos em batalha e uma organização de assistência social que distribuiu pagamentos em dinheiro para dezenas de milhares de deslocados no início deste ano, segundo uma autoridade do Hezbollah. Nos últimos 20 anos, o grupo passou a dominar os vários setores da política fragmentada e sectária do Líbano, bem como a exercer controle sobre indústrias cruciais, além da agricultura e da construção, no sul. Segundo Lina Khatib, do centro britânico de pensadores Chatham House, a posição do grupo cresceu para “influenciar e controlar o Estado no Líbano de dentro das instituições estatais, bem como de fora delas”.
Países ocidentais, entre eles os Estados Unidos e o Reino Unido, impuseram sanções ao Hezbollah e o consideram uma organização terrorista. Enquanto isso, o grupo, que compreende uma organização paramilitar e um partido político, mantém uma base de apoio principalmente entre a comunidade muçulmana xiita da classe trabalhadora do Líbano, que o vê como um defensor de seus interesses e proteção essencial contra o poder militar israelense.
O grupo fornece comida, abrigo e dinheiro aos milhões de deslocados pela invasão israelita
Integrantes do ramo xiita do Líbano deslocados nas últimas semanas pela escalada dramática dos bombardeios israelenses no sul do país disseram confiar na proteção do Hezbollah, que reconstruirá suas casas e os compensará no futuro. Entretanto, com mais de 1 milhão de libaneses deslocados agora, de acordo com o governo, poucos indícios de um cessar-fogo próximo e os contínuos assassinatos israelenses de comandantes do Hezbollah, a escalada atual pode testar a capacidade da organização de apoiar sua base no longo prazo.
O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, fez recentemente um discurso para convocar a população libanesa a “se levantar e retomar seu país” do Hezbollah, indicando uma mudança nos objetivos israelenses no Líbano. Netanyahu sugeriu que Israel poderia agora tentar mudar a liderança política do país, em vez de atacar a presença da organização no sul. “Vocês têm uma oportunidade de salvar o Líbano antes que ele caia no abismo de uma longa guerra, que causará destruição e sofrimento como vemos em Gaza”, ameaçou, sugerindo objetivos muito mais amplos que podem significar maior destruição e um período prolongado de combates.
Sam Heller, analista do grupo de estudos Century International, disse que muito vai depender de até onde as forças israelenses conseguem avançar no sul do Líbano, assim como da clareza dos líderes israelenses sobre seus objetivos. Se Israel reocupar partes do sul do Líbano e deixar desabrigadas centenas de milhares de habitantes que compõem a base de apoio do Hezbollah, “infligiria sofrimento real e acho que provavelmente enfraqueceria a organização, ao reduzir substancialmente sua capacidade de prover o bem-estar desses apoiadores”. Os combates entre Israel e o Hezbollah em 2006 mataram quase 1,2 mil civis e militares no Líbano e feriram mais de 4,4 mil, segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha; um terço deles eram crianças. Cerca de 900 mil cidadãos foram deslocados durante a guerra de um mês.
Domínio. As tropas israelitas ampliam a presença no sul do Líbano e forçam milhões a saírem de casa às pressas – Imagem: Menahem Kahana/AFP e Bakr Alkasem/AFP
Temores de que os ataques israelenses continuem por muito mais tempo do que aqueles da guerra de 2006, e causem mais danos, preocupam a professora Mona Talib, de 42 anos, que fugiu de Dahiyeh em busca de segurança nas montanhas ao redor de Beirute (seu nome também foi alterado por segurança). Mas a comunidade xiita do Líbano depositou sua confiança no Hezbollah e no histórico de reconstrução depois dos combates em 2006, disse ela, citando o que chamou de “fé profunda” na vitória final da organização. “Mesmo que eu perca minha casa, sei que será reconstruída. Pode levar muito tempo, mas um dia vai acontecer”, afirmou. “Temos muita fé de que nossas casas serão reconstruídas, seja nos subúrbios do sul de Beirute, seja no sul do Líbano ou no Vale do Bekaa. Os moradores retornam ao passado, lembram-se do que aconteceu com eles e constroem seu futuro com base nisso.” Talib relembra a experiência de uma amiga próxima que morava no coração de Dahiyeh, cujo “prédio inteiro foi destruído” na guerra de 2006. “Eles recuperaram sua casa. Eu a visitei na casa antiga, vi a nova com meus próprios olhos. Eu vi e conheço alguém que viveu lá. Simples.”
Hachem Haidar, chefe da agência de desenvolvimento regional do governo conhecida como Conselho para o Sul do Líbano, estava menos seguro. Os bombardeios israelenses contínuos que arrasaram cidades perto da fronteira com Israel tornaram “difícil determinar os danos”, disse. Quanto a se o Hezbollah mais tarde compensará aqueles que perderam suas casas, como prometeu recentemente, “honestamente não sei”, respondeu.
Ahmad Noureddine (nome alterado), 26 anos, conta ter ficado num abrigo improvisado administrado pelo Hezbollah por alguns dias e que, embora o local cobrisse o essencial, como comida, água e remédios, estava superlotado, o que tornou a experiência muito desagradável. Ele se mudou para outro lugar. Assim como Talib, Noureddine atualmente deve dinheiro ao Qard al-Hasan, instituição de microfinanças e banco colocado sob sanção pelo Tesouro dos Estados Unidos em 2007 por seus laços com o Hezbollah.
Ao sancionar sete dos “banqueiros paralelos” do Hezbollah em 2021, o governo norte-americano disse que o Qard al-Hasan “se disfarça de organização não governamental”, enquanto fornece serviços bancários de apoio ao Hezbollah, escapa das regulamentações e “acumula moeda forte desesperadamente necessária para a economia libanesa”.
Noureddine disse não se preocupar com a possibilidade de os pagamentos do empréstimo de 6 mil dólares serem exigidos pelo Qard al-Hasan durante o período de conflito. “Eles podem ser flexíveis com os pagamentos. São muito honestos e tementes a Deus. Eles não cobram juros.”
O Hezbollah controla um banco, fundos de investimento e vastos setores da economia
Talib, que fez um empréstimo de 3 mil dólares, continua confiante na tendência de o Qard al-Hasan não pedir reembolsos até o término dos embates com os israelenses. E cita gente que recebeu o valor em dinheiro de seus depósitos em ouro destruídos em ataques aéreos duas décadas atrás. “Os libaneses confiam nessa instituição. A confiança é ainda mais importante do que a proteção”, observa, acrescentando que duvida da exigência do pagamento de empréstimos se a luta prosseguir durante meses e os israelenses continuarem a bombardear a parte do sul de Beirute, onde se localiza sua agência.
O governo de Tel-Aviv há muito considera uma ameaça o Hezbollah, um representante do Irã, opinião agravada pela decisão da organização de disparar foguetes contra o norte de Israel desde 8 de outubro, um dia após o ataque do Hamas ao sul de Israel que matou cerca de 1,2 mil israelenses. Embora Israel tenha dito inicialmente que seus ataques tinham como objetivo garantir o retorno de milhares de israelenses às suas casas perto da fronteira com o Líbano, a intensa escalada gerou maior temor de uma guerra regional.
A comunidade xiita deslocada do Líbano, amontoada em abrigos improvisados e apartamentos vazios, pode sofrer neste momento o choque imediato do deslocamento no curto prazo, disse Talib, mas olhou para o histórico do Hezbollah de reconstruir grande parte do sul do Líbano e lutar contra a ocupação anterior da área por Israel como evidência de que poderia cuidar deles no longo prazo. “Esse partido, esse partido especial, libertou suas terras e permitiu que eles voltassem para suas aldeias para viver suas vidas. Eles estarão ao seu lado não importa o que aconteça, mesmo que perdessem seus líderes do nada”, afirma. “Mesmo que percam uma batalha, não perderão a guerra. Os cidadãos acreditam no partido com base em suas experiências anteriores. Não há guerra sem perdas, mas o vencedor é quem ganha a última batalha.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1333 de CartaCapital, em 23 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A arma da empatia’
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