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A Argentina passa a reconhecer a dupla jornada feminina nos cálculos para a aposentadoria

Um decreto recente do governo reconheceu os cuidados com os filhos e a casa como parte do tempo de serviço.

Recordista. A Argentina lidera um ranking da ONU sobre a adoção de iniciativas na pandemia que levam em conta as desigualdades de gênero. (FOTO: Joel Saget/AFP)
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Em Pinamar, pequena cidade­ da costa bonaerense, vive Beatriz Somoza, que, aos 62 anos, até pouco tempo não conseguia desfrutar da sonhada aposentadoria à beira-mar. Ao contrário. O sumiço dos turistas no último ano e meio de pandemia e o fim do pagamento do Ingresso Familiar de Emergência, programa social que garantiu renda mínima aos trabalhadores autônomos durante a crise sanitária na Argentina, deixaram Somoza em apuros.

Felizmente, não por muito tempo. Um decreto recente do governo que reconheceu os cuidados com os filhos e a casa como parte do tempo de cálculo das pensões permitiu o acesso imediato de Somoza ao benefício – caso contrário, ela teria de esperar mais cinco anos. A iniciativa, calcula-se, beneficiará outras 155 mil mulheres argentinas até o fim do ano.

“Tudo que me pediram foram as certidões de nascimento dos meus quatro filhos e foi super-rápido”, conta Somoza. “Pude me aposentar pagando muito pouco de uma moratória, o que para mim é muito mais fácil.” Cada criança encurtou em um ano o tempo necessário para a aposentadoria. O decreto, explica Santiago Fraschina, secretário-geral da Administração de Segurança Social, visa reduzir a desigualdade entre homens e mulheres.

“Nosso diagnóstico saiu da tentativa de entender o que estava acontecendo para que essas mulheres chegassem aos 60 anos sem ter tempo de contribuição suficiente para se aposentar”, afirma. “A conclusão é de que, como acontece em toda parte, não só aqui na Argentina, a mulher sofre uma grande discriminação no mercado de trabalho.”

Em média, diz Fraschina, nas famílias com quatro filhos, a mulher não passa de 7 anos de contribuição à Previdência, ante 11 daquelas com apenas um filho. Os homens, por sua vez, alcançam 14 anos. “A partir desse diagnóstico é que lançamos essa medida de reconhecimento dos anos de trabalho referentes às tarefas de cuidado para as mães argentinas”, explica o secretário.

A história de Somoza confirma a análise. Professora no início da carreira, a sexagenária mantém atualmente um pequeno comércio. “Trabalhei durante a minha vida inteira e com uma família muito numerosa, que demanda muito. Morava longe da escola dos meus filhos e todo meu tempo era dividido entre eles. Isso me desgastou bastante, até fisicamente.” O decreto desconta um ano para cada filho natural, dois em caso de adoção e 12 meses a mais para aqueles com necessidades especiais. Além disso, beneficiárias da versão argentina do Bolsa Família, a Asignación Universal por Hijo, por ao menos um ano poderão ­computar outros dois adicionais de serviço para cada criança.

A medida visa combater um dos efeitos da desigualdade no mercado

Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos, 76% das tarefas domésticas são realizadas pelas mulheres. Quando o fazem, os homens dedicam menos horas a esse tipo de trabalho, 3,4 horas em média, contra 6,4 das companheiras. “Como as mulheres têm muitos inconvenientes para se inserir no mercado de trabalho, depois para se manter nele e fazê-lo de maneira formal, apenas uma em cada dez, entre 55 e 65 anos, consegue pagar mais de 20 anos de contribuição”, descreve Mercedes D’Alessandro, secretária especial de Economia, Igualdade e Gênero.

“A aposentadoria por cuidado, como apelidamos a Medida Provisória, entende que, para as mulheres, ser mãe significa punição no mercado de trabalho”, avalia a secretária. “É a primeira vez na Argentina que se reconhecem as tarefas de cuidado em uma política pública no sentido de lhes dar acesso à Previdência”, aponta Débora Lopreite, especialista em desigualdade de gênero pela Carlenton University. O país junta-se ao Uruguai, que inclui o trabalho materno no cálculo da aposentadoria, e ao Chile, onde as mulheres recebem um abono por filho. “É um passo importante reconhecer na legislação a jornada dupla e a divisão sexual do trabalho, ou do trabalho intermitente das mães, sobretudo nos setores mais vulneráveis”, comemora Lopreite.

As iniciativas da Argentina nessa área têm merecido o reconhecimento internacional. O país ocupa a primeira posição em um ranking elaborado pelas Nações Unidas, entre 195 nações, na adoção de medidas durante a pandemia de Coronavírus que levam em conta as diferenças de gênero. O governo argentino, aponta o levantamento, instituiu 30 medidas para aliviar o efeito da pandemia – 18 delas direcionadas principalmente às mulheres e à comunidade LGBT. “A Argentina tem uma tradição feminista de muitíssimo tempo e este governo se propôs a enfrentar essa batalha cultural, fazendo uso das ferramentas do Estado. Nesse último ano de pandemia, muitos temas saíram por decreto-lei, maneira mais rápida de abordar os temas de emergência da Covid”, explica D’Alessandro.

 

Entre as medidas recentemente aprovadas estão a legalização do aborto, as cotas de trabalho para trans e o documento de identificação não binário. Para a secretária, quanto mais mulheres em postos de decisão, mais avançará a pauta da igualdade. “Participo de um grupo de WhatsApp que se chama ‘Mulheres Governando’, com 256 integrantes que ocupam cargos hierárquicos do Estado. Isso é central, pois não podemos pensar em políticas com perspectiva de gênero sem que também haja mulheres no poder.”

Publicado na edição nº 1171 de CartaCapital, em 19 de agosto de 2021.

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