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A área dos fãs

O metrô de Doha, de forma inesperada, tornou-se o ponto de encontro de torcedores de todo o planeta

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A festa acontece nos subterrâneos - Imagem: Fabrice Coffrini/AFP
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A Linha Ouro, às 7h50 da noite de quinta-feira, em Doha. Um trem de metrô lotado segue para oeste em direção ao Estádio Internacional Khalifa para a partida Japão e Espanha. Uma rápida olhada no vagão revela o seguinte: uma mulher filipina de Hong Kong com uma camisa da Espanha e boné de beisebol, duas japonesas com máscaras com dois amigos nepaleses (um dos quais voou para o Catar apenas para o jogo), ambas com uniformes do Japão, três coreanos-americanos à procura de ingressos, uma família de mexicanos (um sombrero denuncia) a torcer pela Espanha, três torcedores turbulentos da Arábia Saudita e acima da porta um símbolo dos argentinos que nunca estão longe – uma figurinha Panini de Diego ­Maradona da Copa dos EUA, em 1994.

Era uma mistura improvável, mas não incomum na cidade nas últimas semanas, e aqui está o argumento: o metrô de Doha é o lugar para se estar nesta Copa do Mundo. Se você quiser passar um tempo com gente de todo o mundo, se quiser conhecer suas esperanças e seus medos (principalmente relacionados ao futebol), se quiser rir, cantar e ser lembrado do quanto os seres humanos têm em comum, então pegue o trem. Ou suba e desça as escadas rolantes, ou reúna-se nos saguões. Realmente, honestamente, está tudo ali.

Há uma série de razões para tanto, a começar com uma façanha substancial de engenharia. O metrô de Doha tem três linhas: a Linha Ouro, ou Histórica, de leste a oeste pelas partes mais antigas da cidade, a Linha Vermelha, ou Litoral, de norte a sul ligando o coração de Doha ao novo loteamento de Lusail, a cerca de 40 quilômetros de distância, e, por fim, a Linha Verde, ou Educação, que abrange a Universidade do Catar, a Biblioteca Nacional e, enfim, o shopping center Mall of Qatar. Ela serve a 37 estações ao longo de 75 quilômetros de via, e há 12 anos não existia nem um pedacinho dela. O empreendimento envolveu urbanistas do Catar, operadores ferroviários alemães, fabricantes de trens japoneses, engenharia e construção norte-americanas, sistemas de informática franceses e seguradoras britânicas. Custou cerca de 36 bilhões de dólares e foi entregue em nove anos. Foi inaugurado em 2019, a tempo para o Mundial de Clubes, e cerca de 60 novas estações devem ser acrescentadas até 2026.

Viajar nos trens é igualmente impressionante. Como experiência, é infalivelmente agradável. Trens sem condutores deslizam entre as estações sem solavancos. Eles chegam a cada três minutos (talvez cinco, às 2 da manhã) e dão tempo suficiente para você entrar sem pressa. Na Copa, as viagens de metrô são gratuitas para qualquer um com um Hayya, cartão de visto que se tornou a identificação obrigatória para os visitantes. O vagão da classe Ouro, seção de primeira classe bastante inútil (você raramente fica no trem por mais de 20 minutos), também foi democratizado durante o mês. Os salões da classe Ouro – pequenas salas de espera na estação onde os clientes ricos podem se sentar em cadeiras de espaldar rígido – permanecem só para alguns endinheirados.

Construída em nove anos, a rede ferroviária custou cerca de 36 bilhões de dólares

Se tudo isso soa um pouco entediante, certamente era do interesse de Hassan, o encarregado de um grupo de torcedores marroquinos rumo ao jogo contra o Canadá na quinta-feira 1º. Ele, como qualquer outro que falou sobre o assunto, era um grande fã do metrô, mas tinha suas queixas. “Os vagões são muito pequenos, você tem de dividir o grupo em dois. E a sinalização é confusa, às vezes você não sabe em que direção está indo ou para que lado a porta vai abrir. É importante combinar um ponto de encontro antes de viajar, caso contrário alguém pode se perder.”

Um torcedor marroquino, Osama, de Casablanca, fez questão de dar entrevista. Não tinha muito a dizer, sobre o metrô “muito bem organizado”, mas ele era, sem dúvida, memorável. Magro como um cabo de vassoura e óculos cor-de-rosa à John Lennon, também tinha um par de chifres de alce infláveis na cabeça, que ganhou de um canadense.

Neste ponto talvez seja importante fazer uma pausa. Em 28 de fevereiro de 2016, um trabalhador da construção civil das Filipinas, Juanito B. Pardillo, morreu enquanto trabalhava no projeto do metrô. Em abril daquele ano, o Sindicato Internacional dos Trabalhadores da Construção e da Madeira disse que sua família ainda esperava por uma explicação oficial do ocorrido, embora relatos da mídia sugiram que Pardillo estava na equipe de escavação de um túnel enquanto chovia, algo que contraria as regras de segurança, quando o buraco desabou. Outros quatro profissionais ficaram feridos. Eles faziam parte de cerca de 18 mil homens que trabalhavam para uma empreiteira no projeto.

Para a maioria dos usuários do metrô, entretanto, qualquer contato com trabalhadores migrantes provavelmente será com um queniano. São eles que, exclusivamente pelas estranhezas do processo de subcontratação, cumprem o papel de encaminhar os turistas pelas estações. Trabalhar longos dias, monitorar multidões que se manifestam apenas em determinados horários, é um trabalho difícil, mas esses “executivos de atendimento ao cliente” pegaram um trabalho banal e o transformaram em algo mais.

Tudo começou com Abubakr Abbass, o jovem de 23 anos cuja função era orientar as multidões na movimentada estação Souq Waqif. Em vez de dar instruções da maneira formal e consagrada pelo tempo, ele transformou suas orientações em um estribilho: “Metrô? Por aqui! Metrô? Por aqui!” Em uma cidade cheia de gente em busca de uma experiência comunitária, isso pegou.

As multidões começavam a cantar assim que chegavam às estações ou desciam dos trens. Abbass tornou-se um sucesso no TikTok e foi convidado ao campo durante a partida da fase de grupos entre Inglaterra e Estados Unidos. Outros jovens quenianos adotaram a ideia, criaram coreografias (incluindo mãos de espuma com dedos pontudos) e escreveram canções mais longas. “Estimado cliente. Para onde você vai?” foi um exemplo. “Você pode ir de metrô, ou de bonde, pode ir por aqui, por aqui, por aqui.” Alguns que ouviram essa versão relataram que ela continuava em suas cabeças dias depois.

A rede ferroviária não é apenas um dos poucos lugares de uso gratuito em Doha, mas um espaço onde você pode ficar parado e apenas existir. Melhor ainda, você pode se sentar numa cadeira confortável (em vez de, digamos, no asfalto do fan park oficial da Fifa). É um espaço ocupado pelo público, onde torcedores de todo o mundo se reúnem em combinações inesperadas. Lá, eu assisti jogos, discuti política, comparei preços e busquei dicas. Cantei e dancei e, acima de tudo, ri muito. O metrô tem sido um verdadeiro prazer em Doha. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1238 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A área dos fãs “

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