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A América para os americanos

Os Estados Unidos continuam a se portar como senhores e não parceiros dos países do continente

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Sem clima. Vários líderes latino-americanos chegam à cúpula insatisfeitos com a exclusão de Cuba e outros - Imagem: Anna Moneymaker/Getty Images/AFP
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A vida não anda nada fácil para Joe Biden. Enquanto faz esforços para conter a inflação, recuperar o país da pandemia do Coronavírus e criar uma força-tarefa para tentar frear o aumento de tiroteios em massa que aterrorizam a nação, o presidente norte-americano precisou contornar uma espiral de saias justas durante a 9ª Cúpula das Américas, que, pela segunda vez em seus 28 anos de história, foi sediada pelos Estados Unidos.

Como anfitrião do evento que tinha como tema “Construindo um Futuro Sustentável, Resiliente e Equitativo”, Biden passou a enfrentar contratempos antes mesmo do início do encontro, encerrado na sexta-feira 10. Criada em 1994 sob a presidência de Bill Clinton, a reunião ocorre, aproximadamente, uma vez a cada três anos e foi idealizada com o propósito de reunir os líderes dos países das Américas do Norte, do Sul e Central e do ­Caribe. Neste ano, os EUA cortaram, porém, da lista de convidados ­Miguel ­Díaz-Canel, sucessor escolhido pelo ex-líder cubano Raúl Castro, Daniel Ortega, presidente da Nicarágua, e Nicolás Maduro, da ­Venezuela. Os vetos provocaram a debandada de importantes nomes.

Após semanas a negociar a participação de presidentes como Jair Bolsonaro e do argentino Alberto Fernández, na véspera do início da cúpula o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, anunciou que não participaria da reunião e que enviaria um representante, o secretário de Relações Exteriores, Marcelo Ebrard Casaubon. “Não vou porque nem todos os países das Américas estão convidados e acredito na necessidade de mudar a política que se impõe há séculos: exclusão, querer dominar sem motivo, não respeitar a soberania, a independência de cada país. Não pode haver Cúpula das Américas se todos os paí­ses do continente americano não participam”, justificou Obrador.

Os vetos de Biden esvaziaram a reunião, que pretendia inaugurar uma nova fase diplomática

Além do boicote mexicano, El Salvador, Honduras e Guatemala haviam sinalizado que enviariam apenas representantes de nível inferior ao encontro. Com uma cerimônia na qual os bastidores tomaram conta da festa, quem marcou presença ou limitou-se a dizer que “é o anfitrião quem faz a lista de convidados”, como justificou o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, ou admitiu que as “a exclusões foram um erro”, caso do presidente do Chile, Gabriel Boric.

Nos principais jornais do país, além do boicote de alguns dos mais importantes chefes de Estado, ganhou destaque o profundo ceticismo com que a agenda do presidente norte-americano foi recebida pelos convidados. Enquanto o New York Times destacou que Biden enfrentava “a improvável perspectiva de fazer um progresso diplomático sério em um momento em que muitos de seus colegas duvidam do compromisso dos Estados Unidos na região”, a rede de televisão CNN reforçou que as perguntas sobre a lista de convidados do evento e os participantes teriam “obscurecido o objetivo maior, uma fonte de frustração para funcionários do governo que não esperavam necessariamente a bagunça”.

Mais do que o não comparecimento, a ausência de algumas lideranças expôs ainda uma velha rixa. A presença da China como grande parceiro comercial de paí­ses como Argentina, Brasil, Chile, Peru e Uruguai desde o início dos anos 2000 escancara não só a perda de influência de Washington, como o longo percurso do governo Biden até conseguir convencer o mundo de que tem um representante à altura do cargo.

Hipocrisia. Falta moral a Biden – Imagem: Saul Loeb/AFP

Logo após o anúncio de Obrador, a porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, alegou que, “com base em nosso respeito compartilhado pela democracia, liberdades fundamentais, dignidade do trabalho e livre iniciativa, a posição principal do presidente Biden é que não acreditamos que ditadores devam ser convidados”. Não conseguiu justificar, sem desconforto, a “parceria importante” com a Arábia Saudita, reconhecidamente uma grande violadora dos Direitos Humanos, e para onde, tudo indica, o democrata viajará no fim do mês, a fim de negociar o aumento da produção de petróleo.

Apesar das baixas, Biden desembarcou na quarta-feira 8 para os três dias de conferência que contou com a presença de 23 chefes de Estado. A 9ª edição aconteceu não por acaso na cidade de Los Angeles, na Califórnia, a segunda maior do país, que abriga a maior comunidade hispânica dos Estados Unidos, com mais de 224 idiomas falados e uma população que representa 140 países. Durante o evento, representantes dos governos compartilharam ­suas prioridades e preocupações, com destaque para a Covid-19 e as brechas que a pandemia expôs nos sistemas de saúde, econômico, educacional e social, além das ameaças à democracia. A crise climática e a falta de acesso equitativo a oportunidades econômicas, sociais e políticas que sobrecarregam os mais vulneráveis também foram pautas em evidência.

Na mesa de debates, grande parte dos representantes latino-americanos estava curiosa para ouvir como os Estados Unidos pretendiam enfrentar, sobretudo, as questões migratórias. Nesse sentido foi assinada a “Declaração de Los Angeles sobre Migração”, documento considerado pelo governo como “um passo sem precedentes e ambicioso no enfrentamento da crise migratória de maneira abrangente”. Dados mais recentes da New American Economy mostram que 13,6% da população dos Estados Unidos em 2019 era formada por imigrantes. Enquanto a Cúpula estava em andamento, uma caravana de 2,3 mil migrantes, formada principalmente por venezuelanos, partiu a pé na cidade de Tapachula, no sul do México, rumo à fronteira, para chamar atenção das lideranças.

Na tentativa de otimizar resultados e assegurar a implementação significativa dos compromissos firmados durante o encontro deste ano, foi anunciado pelo secretário de Estado, Antony Blinken, que os EUA vão sediar, em abril de 2023, a “Cúpula Inaugural das Cidades das Américas”. O encontro será em Denver, no Colorado, e, de acordo com Blinken, promete reunir “prefeitos e urbanistas da América Latina e do Caribe para ajudar a garantir que as cidades das Américas alcancem todo o seu potencial”.  •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A América para os americanos “

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