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60 horas de agonia

Sobreviventes do terremoto na Turquia tiveram de retirar por conta própria os corpos de familiares sob escombros

60 horas de agonia
60 horas de agonia
O governo central levou dias para enviar socorristas a algumas localidades turcas - Imagem: Bulent Kilic/AFP
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Durante 60 horas, Baris Yapar tentou resgatar os corpos de seus avós dos escombros da casa deles. Com seus pais, Habip e Sevcan, o estudante de Psicologia Clínica de 27 anos tentou em vão remover os cadáveres. Foi um trabalho desesperado. Demorou dois dias inteiros após o devastador terremoto duplo da segunda-feira 6, antes que a agência oficial de socorro da Turquia chegasse à cidade de Samandag, perto da fronteira com a Síria. Quando, finalmente, a ajuda chegou, o pequeno número de socorristas estava esgotado.

Os Yapar observaram as equipes de resgate retirarem do concreto pesado pessoas que a família conhecia há gerações. Lá estava Semire Zubari, dono do mercado local, onde eles faziam compras há anos, e o corpo de Gonul Sakalli, que Baris conhecia desde criança. Então, ele viu o corpo do filho de Semire, Hasan, seu amigo de infância. “Não havia mais carros para levá-lo ao necrotério”, disse. “O único veículo que restou foi uma escavadeira. Observei enquanto eles colocavam meu amigo de infância na frente da escavadeira para levá-lo ao necrotério. Ver aquilo, ver esses extremos, me destruiu. Eu me perguntei: não temos mais sequer a dignidade de carregar nossos cadáveres adequadamente para o necrotério?”

Mais tarde, equipes de resgate do município de Istambul vieram socorrer os Yapar. Mesmo assim faltavam recursos. “Eles olharam e disseram: ‘Não temos ferramentas para retirá-los’”, disse ­Baris. “Meu pai é engenheiro civil e disse a eles: ‘Olhem, eu tenho as ferramentas, apenas façam isso. Apenas os tirem, porque não podemos arriscar a nós mesmos’. Quer dizer, ele é engenheiro, não trabalhador de resgate. Eles trouxeram um gerador e demos a eles todas as ferramentas necessárias. Finalmente, conseguimos, 60 horas depois.”

Samandag, até a semana passada uma cidade de cerca de 120 mil habitantes, foi destruída. A padaria está submersa pelos escombros. O hospital foi forçado a fechar por vários dias depois que um segundo terremoto atingiu a área horas após o primeiro abalo, reabrindo com uma sala de cirurgia improvisada no andar térreo. Até mesmo a funerária de Samandag é insegura para se entrar, com grandes pedaços de metal pendurados e caindo do teto, exibindo um buraco cavernoso.

Como muitos residentes, Baris e seus pais agora dormem no carro, temendo entrar em casa. Uma poeira macia, branca e fina dos escombros espalhou-se pela cidade, cobrindo tudo o que tocou. Equipes de resgate tentam abafar o barulho dos carros, para ver se encontram algum sinal de vida sob os escombros, mas esses sinais são poucos e distantes entre si.

Apesar da devastação, a presença do governo é leve – autoridades de segurança com equipes de emergência dispersas e um pequeno grupo tentando encontrar corpos há muito tempo presos sob suas casas. Muitos dos que chegaram para ajudar a distribuir comida, remédios e atendimento foram enviados pelo município de Istambul, ligado ao maior partido de oposição do país, em meio a poucas sugestões de ajuda do governo para remover pilhas de entulho tão altas que bloqueavam a rua em muitos lugares.

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Samandag é uma cidade que foi deixada à própria sorte, com os sobreviventes trabalhando para salvar seus amigos e vizinhos dos escombros. Eles temem que o terremoto tenha trazido o fim de sua comunidade. Moradores disseram que o governo central de Ancara há muito negligenciava a província de Hatay, uma faixa de terra fértil e verdejante repleta de olivais e árvores cítricas, delimitada pela província síria de Idlib, de um lado, e pelo Mar Mediterrâneo, do outro.

As consequências do terremoto, disseram eles, simplesmente mostraram quão pouco o governo se preocupou em preservar o que restou da província e seus diversos povos – seitas que vivem lado a lado há milênios, entre antigas sinagogas, igrejas, mesquitas e monumentos. A província e sua rica história sobreviveram a muitos terremotos, incluindo o de Antióquia, no ano 115 da Era Cristã, que, segundo se estima, teve força semelhante à do terremoto mortífero da semana passada.

Mas aqueles que ficaram em Samandag disseram temer que a destruição causada pelo último terremoto seja uma sentença de morte para sua comunidade, espalhando armênios, alauítas, cristãos e turcos de língua árabe de todo o país para as cidades metropolitanas da Turquia, pois não puderam permanecer no que restou da cidade.

Quando o primeiro terremoto ocorreu, nas primeiras horas da manhã, aqueles que se encontraram vivos imediatamente começaram a tentar salvar seus vizinhos presos sob os escombros. O dono de uma loja de ferragens local, ­Lami Dogru, puxou ferramentas de sua loja destruída e começou a trabalhar com um torno de aperto e um martelo.

“Comecei por ali”, disse ele, apontando para a casa do sobrinho, depois de um monte de concreto quebrado com canos e um poste de luz espalhados ao lado de aparelhos de ar-condicionado, cadeiras e grades de ferro retorcidas, empilhados sobre pedaços de alvenaria. “Consegui salvar três pessoas, embora uma delas fosse meu primo, que perdemos.”

Dogru tentou ter esperança sobre o futuro de Samandag e que o governo ajudaria a reconstruí-la. “Levará uma década para que as coisas voltem a ser como eram, se o Estado ajudar”, disse ele. “Senão, talvez possa levar até 15 anos. Era realmente uma cidade bonita.”

Nos dias que se seguiram aos terremotos, muitos dos que sobreviveram deixaram Samandag, trocando os escombros de suas casas por cidades maiores. ­Baris e seus pais estão discutindo se ficarão. “Quando estávamos esperando na fila do necrotério, a primeira pergunta que nos fizeram foi: ‘O que vocês vão fazer depois de enterrar seus mortos? Vocês vão embora?’”

Dias depois de recuperar os corpos de seus avós, transportando-os eles mesmos para o necrotério em sacos laranja improvisados, pois não havia ninguém para ajudá-los, eles voltaram para iniciar os preparativos do enterro. “Quando procuramos meus avós no necrotério, encontrei Gonul Sakalli e sua filha deitadas uma ao lado da outra em seus sacos de cadáveres”, disse Baris. “Estávamos abrindo os sacos para identificar as pessoas e as encontramos. De repente, percebi que grande parte da minha infância em nosso bairro foi apagada.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1247 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “60 horas de agonia”

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