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14 de julho de 1953: o massacre esquecido que aconteceu no centro de Paris

Em plena Place de la Nation, uma das praças mais importantes do nordeste de Paris, os tiros da polícia naquele dia causaram sete mortes e deixaram pelo menos cinquenta manifestantes feridos

Créditos: Wikimedia Commons
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O feriado nacional francês de 14 de Julho é lembrado principalmente pela pompa do desfile militar que acontece todos os anos na avenida Champs-Élysées, os bailes populares das casernas de bombeiros e os fogos de artifício.

Durante algumas décadas, porém, a data, como o 1º de maio, foi marcada por grandes desfiles de grupos da esquerda, tendo como inspiração direta a tomada da Bastilha, em 1789. O primeiro evento ocorreu em 1935, após a criação da Frente Popular, a primeira união de partidos da esquerda após a manifestação de extrema direita de 6 de fevereiro de 1934.

Foi nesse contexto que aconteceu a manifestação de 14 de julho de 1953, onde os argelinos do Movimento pelo Triunfo das Liberdades Democráticas (MTLD) vieram encerrar a marcha. Muitas vezes, para evitar confrontos, eles eram colocados no meio do cortejo, entre grupos menos propensos a serem reprimidos pela polícia.

Violência colonial em plena luz do dia na metrópole

Em plena Place de la Nation, uma das praças mais importantes do nordeste de Paris, os tiros da polícia naquele dia causaram sete mortes e deixaram pelo menos cinquenta manifestantes feridos.

A sangrenta repressão trouxe a violência colonial para o coração de Paris, justamente no dia considerado símbolo de liberdade e emancipação.

Décadas depois ainda não se sabe ao certo as razões para os tiros. Alguns falam que seriam uma revanche após os protestos nacionalistas independentistas e anticolonialistas, que começaram na Argélia em 8 de maio de 1945 e se estenderam por sete semanas, sob dura repressão. Outra hipótese seria de que nenhuma ordem de atirar teria sido dada e que os primeiros tiros foram disparados espontaneamente por alguns integrantes das forças de ordem. Duas pessoas morreram e a cólera se espalhou entre a multidão.

O que se seguiu foi uma carnificina. Sabe-se que nenhum argelino portava arma de fogo e que os tiros vieram estritamente do lado policial, ainda que relatórios oficiais da época tenham registrado uma versão diferente. A única vítima francesa era um sindicalista da CGT que tentava pedir um cessar-fogo.

“Um racismo que não ousa dizer seu nome”

“Quando você vê que a maioria dos meios de comunicação que falam do evento se referem a essa operação como ‘brigas’ ou ‘incidentes’ que provocaram sete mortos e mais de uma centena de feridos, quando você finalmente vê nossos parlamentares tentando apaziguar, esconder sorrateiramente esses mortos que incomodam, temos razão, me parece, de nos questionarmos se a imprensa, o governo, o Parlamento, teriam mostrado tanta displicência caso os manifestantes não fossem argelinos, e se, nesse mesmo caso, a polícia teria atirado. Claro que não. As vítimas do 14 de julho também foram mortas por um racismo que não ousa dizer seu nome”, escreveu os escritor Albert Camus, nascido na Argélia em 1913, ao jornal Le Monde.

Em 2014, Daniel Kupferstein realizou o documentário “Balas do 14 de julho de 1953”. Três anos depois, após revisar todos os seus arquivos, deu o mesmo título a um livro publicado pela editora La Découverte, que até hoje ainda é a principal referência sobre o assunto.

Ele revisou os arquivos da polícia e consultou e documentos da investigação oficial. Daniel também vasculhou a imprensa nas semanas seguintes ao massacre e buscou depoimentos de vítimas ou de seus familiares, bem como de alguns policiais, com base nos nomes registrados no processo de investigação.

Balas à queima-roupa

Alguns dos policiais disseram que não se lembravam daquele dia, outros simplesmente se recusaram a dar entrevista, dois finalmente responderam – ambos morreram logo após essas entrevistas. Um dos policiais que aparece no filme admite ter “disparado na horizontal”, ou seja, na direção dos manifestantes, quando o outro diz que atirou para o ar para empurrar a multidão para trás.

Segundo o relato deles, foram encontradas no local 210 cápsulas de bala, e não as 10 especificadas na perícia. Eles contaram ainda que os policiais foram comprar cartuchos em um loja de munições para recarregar as armas e assim camuflar a maioria dos tiros feitos com balas militares.

Nenhum dos dois demonstrou remorso. “Foi chocante para mim, porque estava voltando da Argélia, onde tinha ouvido as famílias dos falecidos”, conta o diretor. O principal envolvido no tiroteio leu, no dia da visita, um livro sobre os segredos da polícia que mostrou ao documentarista. Quando, no final da entrevista, o cineasta lhe pergunta se tinha algo a acrescentar, esperando uma palavra de solidariedade para com as vítimas, o policial recordou, brincando, a frase de um colega: “Quando é que vocês vão nos dar metralhadoras para atirar nas multidões?”.

O massacre foi rapidamente esquecido na imprensa da época. O fato é que naquele dia, como acontecerá na Irlanda depois do Domingo Sangrento de setembro de 1972, muitos militantes argelinos renunciaram a um caminho estritamente político e negociado.

Algum tempo depois, o MTLD se dividiria entre os partidários da luta armada da Frente de Libertação Nacional, a FLN, e os leais ao antigo líder Messali Hadj, em torno do Movimento Nacional Argelino, o MNA.

Na França, outros episódios sangrentos ainda vão marcar a luta pela independência da Argélia. 17 de outubro de 1961 e 8 de fevereiro de 1962 são duas outras datas marcadas na história pela violência policial que causou a morte de argelinos. Nos dois casos, a violenta repressão policial foi justificada pelos atentados que aconteciam durante a Guerra da Argélia.

“O que me determinou a fazer este filme”, conclui Daniel Kupferstein, é o que digo em essência no final do meu livro. Em 1953, a guerra na Argélia não tinha começado, o que torna sem sentido as justificativas constantemente apresentadas sobre a violência cometida em outubro de 1961 ou fevereiro de 1962″.

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