3ª Turma

Uma carta para Wilson

Já tivemos a chamada “gratificação faroeste” aqui no Rio de Janeiro e nem por isso o ambiente se tornou mais pacífico.

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Caro Wilson, inspirado no belíssimo trabalho do meu dileto Valois [1] e mesmo não tendo votado em você em nenhum dos dois turnos da eleição estadual, tomei a liberdade de escrever essas linhas em razão de alguns traços comuns em nossas trajetórias de vida e, principalmente, por acreditar que, para a efetivação do projeto constitucional de uma sociedade livre, justa, solidária e cidadã, a figura do diálogo se mostra imprescindível. Diante dessa crença, peço que receba sem preconceitos e desprovido do discurso bélico que, desde o seu surgimento no cenário político, insiste em te acompanhar.

Logo quando você surgiu como candidato à chefia do Executivo fluminense, soube que passou alguns importantes anos de sua juventude em Villegagnon. Experimentou, assim, o paradoxo de um interno: tão próximo e tão distante da Cidade Maravilhosa.

Ainda com base nas informações pessoais que divulgou em sua campanha, tive conhecimento de sua formação acadêmica na área jurídica, sendo certo que o título de mestre demonstra o seu encanto pela produção de conhecimento.

Não poderia, ainda, menosprezar o seu passado no serviço público estadual, ou seja, quando ostentou a faixa verde dos atores jurídicos. Ser Defensor Público sempre exigiu coragem, vez que a defesa de pessoas inseridas em contexto de extrema vulnerabilidade não poupa a ira de alguns que insistem em não acreditar na universalidade dos direitos.

Apesar de não te conhecer e ser mais jovem que você, ouso – um atributo próprio da juventude – afirmar que consigo compreender, mesmo que parcialmente, esses três momentos de sua vida, posto ter tido experiências muito próximas das suas.

Fui praça especial da Marinha do Brasil e passei dois anos de minha vida na antiga fortaleza de Nossa Senhora da Conceição de Villegagnon. Acordar com o toque de alvorada na “boca de ferro” não era nada agradável. O primeiro ano não foi nada fácil, quer seja pela minha condição de calouro, quer seja pelo maldito cálculo diferencial que tanto tirou meu sono. Mas, ainda como aspirante, decidi singrar por outros mares, tal como você realizou já depois de formado.

Com muito esforço, cursei a faculdade de direito e, apesar de todo meu entusiasmo, em alguns momentos me deparei com o desânimo decorrente do conhecimento da patologia da falta de efetividade das normas constitucionais. Posteriormente, obtive o título de mestre e muito me orgulho de ter sido orientado por Lenio Streck e ter minha dissertação aprovada com recomendação de publicação.

E já que falei no mundo jurídico, me considero um verdadeiro reincidente específico na chamada arte de “defensorar”. Não conheci um cenário de carestia de salário que motivou a sua saída da carreira, mas, no curso desses quase 12 anos como Defensor Público, me vi tantas vezes desafiado a ter que adotar comportamento antagônico ao esperado por muitos.

Se estivéssemos na Marinha do Brasil, instituição honrosa e que tantos serviços presta ao país, certamente essa pública missiva seria compreendida como uma afronta à uma das bases da caserna, a hierarquia. Mas as nossas realidades de vida me permitem tranquilamente me dirigir a você. Não temo, assim, qualquer penalidade administrativa e ainda que o tom da minha fala não o agrade, tenho a serenidade de que o bailéu não será o meu destino por realizar algo que poderia ser considerado como inapropriado.

Feita essa apresentação de possíveis traços comuns em nossas trajetórias de vida, trago alguns pontos para uma maior reflexão sua em razão de suas propostas de atuação e que vêm sendo divulgadas nestes momentos iniciais do seu governo.

Wilson: deixe de lado o populismo. Recorde-se do teu tempo como defensor público e então se lembrará do caráter contramajoritário dos direitos e garantias fundamentais. O emprego de respostas “mágicas” e, principalmente, inconstitucionais não se mostrará exitoso para os graves e complexos problemas enfrentados pelo nosso Estado. O aplauso fácil da opinião publicada é sinal indubitável da manutenção de privilégios de poucos.

Aliás, aproveite para abandonar imediatamente esse seu discurso tétrico. O Estado não pode, a título de se encontrar em uma dita guerra urbana, se equiparar ao bandido, pois, se assim o fizer, perderá a sua legitimidade. Mais do que nunca é fundamental estabelecer a distinção entre o agente da lei e o criminoso. O seu prometido programa de extermínio de pessoas somente será responsável por causar dor e sofrimento, tal como já experimentado na lógica das vidas indignas relatadas por Orlando Zaccone sobre o fenômeno dos autos de resistência. Não queira inventar um novo conceito de legítima defesa, você é um jurista e sabe muito bem que a lei não quer conceder salvos-condutos para ceifadores.

O Direito Penal do Inimigo pode agradar a turba, mas não é eficaz. Já tivemos a chamada “gratificação faroeste” aqui no Rio de Janeiro e nem por isso o ambiente se tornou mais pacífico. Em vez de querer liderar uma campanha de morte, quem sabe não seja o momento de encampar uma séria discussão sobre a necessidade de rever a atual política de combate às drogas, que foi considerada por Johann Hari como a mais mortal do mundo. É chegado o momento de uma nova abordagem sobre essa delicada temática, o que, por via de consequência, permitirá o esperado ato de largar de mão práticas capazes de somente proporcionar morte, dor e estigmatização.

Por favor, relegue essa obsessão por Guantánamo. Visite as unidades prisionais, vá em Gericinó! Não se esqueça de que recentemente a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao apreciar denúncia da nossa Defensoria Pública, proferiu decisão que impôs ao Estado brasileiro computar em dobro cada dia de cumprimento de pena no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho. Mesmo vivendo uma corrida contra a morte, não se esqueça de que o preso, se não perecer no cárcere, um dia retornará a sociedade. Reflita, portanto, em uma nova forma de ressocialização, pois se gasta muito e mal nessa falácia prometida pela Lei de Execução Penal. Desfaça dessa ideia de que o preso não quer trabalhar, o que falta é oportunidade para ele. Aliás, por falar em trabalho do preso, confio que você, enfim, abrirá a caixa preta dos pecúlios administrados pela Fundação Santa Cabrini. Não se esqueça dos servidores da SEAP, são mulheres e homens que merecem ser valorizados, a começar pela implementação de uma verdadeira política salarial que leve em consideração a insalubridade do trabalho.

Quanto à redução no orçamento de diversas pastas governamentais, afaste essa política de austeridade da Academia. Lembre-se que é com a pesquisa e a produção científica que soluções sérias podem ser apresentadas para os diversos problemas que enfrenta a população fluminense. No modelo constitucional brasileiro nenhuma política de austeridade que viole os direitos sociais pode ser tida como compatível, sob pena de perpetuar o processo histórico de desigualdades.

Aliás, Wilson não sei se percebeu, mas se a ficha não caiu, eu te garanto que será muito rápido esse conhecimento da realidade: administrar a coisa pública é completamente diferente da judicatura. Não basta ter a caneta e mandar o meirinho ir cumprir a ordem. É preciso sair das torres de marfim e dos palácios pomposos. Adotar comportamentos que os burocratas da toga não conhecem. Encontrar o povo nas filas de caóticos hospitais. Conversar com pais desesperados com as condições da educação pública. Enfim, será necessário sentir o cheiro do povo.

Sem sombra de dúvida, tudo o que aqui expus vai de encontro ao que você vem afirmando nos últimos tempos e, ainda que considere bobagem o conteúdo dessa carta escrita por quem não gostaria de ver você na Chefia do Executivo, eu apelo para sua memória afetiva. Ao recebermos nossos espadins, juramos que nos dedicaríamos “inteiramente aos interesses da Pátria, cuja honra, integridade e instituições” defenderíamos “com o sacrifício da própria vida”. Não peço qualquer ato de imolação, não precisamos de mártires, a nossa população já é composta por anônimos heróis. Relembro que esse juramento realizado na data festiva da Batalha Naval do Riachuelo tem como razão de ser o fiel cumprimento do Texto Constitucional. Assim, torço para que abdique do populismo, do discurso de morte, do uso simbólico do Direito Penal e de uma política de austeridade voltada contra os direitos sociais, pois, se assim fizer, terá demonstrado que o ato solene realizado em Villegagnon não foi em vão. Nosso passado nos condena a sermos escravos da ordem jurídica, não se esqueça disso. Jamais!

[1] https://www.cartacapital.com.br/justica/carta-aberta-ao-presidente-lula/

[2]  ZACCONE, Orlando. Indignos de vida. A forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

[3] HARI, Johann. Na fissura. Uma história do fracasso no combate às drogas. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 383.

[4] http://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/placido_se_03_por.pdfhttp://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/placido_se_03_por.pdf

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