CartaCapital

Populismo lavajatista agora na versão vacina

Lava Jato se apresenta como gestora de verbas públicas que, originalmente, não lhe compete gerir. Agora, o alvo são as vacinas.

O ex-procurador e ex-integrante da força-tarefa da Operação Lava Jato Deltan Dallagnol. Foto: Lula Marques
Apoie Siga-nos no

A operação Lava Jato é referência no Brasil de politização do judiciário, a sua versão mais aperfeiçoada. Esse fenômeno alcança complexa teia relacional que envolve desde a Operação Satiagraha, em 2004, a ação penal 470, do Mensalão, no STF, em 2007, passando pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, até finalmente alcançar a deflagração da Lava Jato, em março de 2014, perante a 13ª Vara Federal de Curitiba.

Trata-se da versão mais recente e, certamente, mais perigosa da politização do judiciário, o último grau de politização, quando o direito é utilizado como um verniz para interferir na soberania popular.

A aparente benevolência da Lava Jato, ao oferecer o valor de R$ 552 milhões, fruto de acordos de leniência para “compra de vacinas”, é patológica desse imbróglio que se tornou, no Brasil, confundir atividade jurisdicional com populismo, afetando rotineiramente e sem pudores, por meios indiretos, os mecanismos da soberania popular. E é na fronteira dessa temerária mistura entre direito e política que os atos da Lava Jato merecem ser lidos.

O oferecimento por parte da Lava Jata à União de valores que já pertencem a este ente federativo repete o conflito ocorrido em julho de 2020, quando a juíza Gabriela Hardt, imaginando-se gestora de verbas públicas, “ofereceu” R$ 508 milhões provenientes de acordos de leniência e colaboração premiada obtidos na Lava Jato, para combate à Covid-19. Na época, o STF entendeu corretamente que ao poder judiciário não cabe decidir sobre destino de verbas da própria União.

Desta vez, a Lava Jato do Rio de Janeiro, abusando do juridiquês, fala em “consultar União” sobre uso dos valores custodiados, mas o marketing judiciarista sugere, diante do quadro de fragilidade na saúde pública, uma relação no mínimo intrincada, na qual populismo e jurisdição perigosamente se misturam. O pano de fundo é o risco de extinção da força-tarefa e a sua absorção pelo Grupo de Atuação de Combate ao Crime Organizado, do Ministério Público Federal. Uma decisão política demagógica, coerente ao histórico do lavajatismo.

Politização do judiciário – um caminho sem volta?

Falar em politização do judiciário é diferente de falar em judicialização da política. E é preciso demarcar essa diferença, ressaltando seu valor heurístico, pois, do contrário, trocaríamos, no velho ditado popular, “os pés pelas mãos”.

Enquanto a segunda se destaca pelos agenciamentos esperados no mútuo regime de interferência entre direito e política, sendo prevista e, inclusive, desejada no território compósito do campo democrático, a primeira se caracteriza pela derrubada das fronteiras, quando o direito passa a usurpar da política as suas funções, afetando diretamente a soberania popular.

Pode-se pensar em gradações de judicialização da política, que, no Brasil, alcança basicamente três níveis. O primeiro é o controle de constitucionalidade das leis, que responde aos valores dispostos na Carta Cidadã, que adotou ampla concepção de controle de constitucionalidade de leis, admitindo os controles concentrado/abstrato e o incidental/concreto. O segundo nível é o controle das políticas públicas, chamado, vulgarmente, de “ativismo judicial”. Por fim, no terceiro e último degrau aparece o controle dos políticos em si, quando a judicialização da política corre o sério risco de se transformar em politização do judiciário, nível esse que alcança o processo de messianismo jurídico, essa visão torta — tão comum a certo extrato judiciarista — de que ao direito cabe a função de moralizar a política, e da qual a Lava Jato é seu expoente máximo.

Despolitização cínica

É preciso se atentar para os borrões, pois fronteiras, ao mesmo tempo em que separam, interconectam. E pensar a relação entre direito e política é falar mais do que de separação, mas, sobretudo, de borramentos.

A Lava Jato flerta com a política no seu pior sentido desde o início e alastra, como um vírus, o imaginário messiânico do direito, como se fosse a instância máxima de moralização da política, como se a ela coubesse “limpar” a “sujeira incontornável” do universo da pólis. Como se o Direito pudesse, como um pai, corrigir os desvios democráticos e a “falta de bom senso” das maiorias eleitorais, especialmente daquelas pobres que “não sabem votar”: “Pai perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem!”.

O duplo movimento, no qual o judiciarismo se fortalece, é pictórico, quase cínico: enquanto se aumenta o poder dos juízes, reduz-se a dimensão da política, despolitiza-se, descomplexificando a sua heterogenia. Porque democracia é, sobretudo, gestão do dissenso e de diferenças. E retirar a política de cena é fortalecer o poder judiciário como a sua versão menos plúrima, o estado da arte da forma elitista de mercantilizar o mundo, sob o absoluto da proteção da lei.

É preciso dizer em alto e bom som: jurisdição é uma coisa, política é outra. Dizer o direito é uma coisa, gerir verba pública é outra. Uma coisa é o direito, mesmo titubeante, tentando se irrigar pelos seus aprendizados institucionais. Outra coisa bem diferente é o direito vestido de populismo, que é ainda pior do que o populismo político, posto que fora, inclusive, de suas más vocações. Não podemos continuar trocando os pés pelas mãos…

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo