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Políticas de memória, verdade e justiça: o que está ao alcance das cidades?

Às vésperas de eleições municipais, é importante destacar o trabalho ao alcance das cidades para as reparações simbólicas às famílias

Descrição: Monumento em Homenagem aos Mortos e Desaparecidos Políticos no Parque Ibirapuera Foto: Viviane Okama
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Em meio a um cenário global pandêmico e um país em chamas, as eleições municipais são um chamado urgente a retornar os olhares para a cidade. De onde, na verdade, o foco nunca deveria se desviar quando se trata de políticas públicas de direitos humanos.

É na cidade que tem gente passando fome, trabalhador sem emprego, pessoa em situação de rua, imigrante sem perspectiva de recomeço. É dentro e fora de casa que mulheres, LGBTQIA+, negros e indígenas são violentados. São as calçadas das quebradas que amanhecem ensanguentadas após ações policiais. São escolas municipais as responsáveis por ofertar uma educação infantil e fundamental de qualidade, acessível e inclusiva. É a rede de assistência social que deve proteger seus habitantes e visitantes, dando-lhes condições dignas. E assim sucessivamente em todas as frentes voltadas para a garantia de direitos a pessoas vulnerabilizadas.

Se é nos territórios que as violações aos direitos humanos acontecem e se é ali que os direitos devem ser efetivados na prática, prefeituras e câmaras legislativas dos 5.568 municípios brasileiros não podem se esquivar. Ao alvorecer das eleições municipais, este é o momento de implicá-los.

Entre os temas cruciais a serem abordados localmente, sobretudo diante da conjuntura política nacional, está a garantia do direito à memória, à verdade e à justiça para os crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar.

São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre concentram mais da metade dos mortos e desaparecidos políticos reconhecidos oficialmente no Brasil. Não por acaso, são os mesmos locais que sediaram grande parte dos movimentos de resistência política ao regime autoritário. Esses territórios contam com uma sociedade civil atuante, que há mais de 50 anos cobra respostas. Congregam um mosaico de histórias, registros e vivências de sobreviventes, familiares e testemunhas ainda por descobrir e preservar.

Eles são a memória viva desse período. E que deve, mais do que nunca, ser acessada, ativada, potencializada e disseminada para o maior número de pessoas. É a única forma de garantir nosso direito – de todas e todos, não apenas das vítimas – de saber o que aconteceu. É a única forma de nos prepararmos como nação para enfrentar atrocidades ainda hoje naturalizadas – já que nunca devidamente esclarecidas e julgadas – como a perseguição política, a tortura, a ocultação de corpos, o genocídio indígena e preto, principalmente nas periferias dos grandes centros. É nas cidades que se entoa o grito de basta. Ontem e hoje.

Uma análise mais detida das diretrizes do atual Programa Nacional de Direitos Humanos, o PNDH-3, que em 2009 reconheceu pela primeira vez o direito à memória, à verdade e justiça como direito de cidadania a ser assegurado pelo Estado, nos permite notar que os órgãos federais designados não seriam capazes de efetivá-los por completo sem a colaboração das cidades e estados. São mudanças de nomes de ruas que mantêm homenagens a agentes da repressão, é a revisão de legislação – por exemplo, os procedimentos dos cemitérios em relação a desconhecidos –, é garantir que o tema seja debatido nas escolas, é manter vivas as datas do calendário comemorativo de lutas, é rever as marcas deixadas pela ditadura no espaço público. Fazer isso sem contar com o poder local seria contentar-se com retórica.

Tomemos o exemplo de São Paulo. De 2013 a 2016, a prefeitura experimentou criar na Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, um órgão para cuidar de forma estruturante das ações ao alcance do poder executivo municipal nessa frente. Diferentemente das comissões que se multiplicaram em todo o território nacional após a aprovação da Comissão Nacional da Verdade, de caráter investigativo e vigência temporária, a Coordenação de Memória e Verdade (CDMV) se desenha como um órgão permanente, um braço do poder executivo responsável por traduzir tais diretrizes e recomendações em ações práticas no território.

Protesto durante a ditadura no Brasil, iniciada em 1964 (Foto: Reprodução)

A CDMV nasce para retomar ações praticamente abandonadas pelo governo municipal desde o fim da gestão Erundina, que nos anos 1990 revelou ao mundo uma vala clandestina criada pelos agentes da repressão para ocultar mais de mil pessoas consideradas “descartáveis”. Foram diversas ações no intuito de reverter o legado autoritário deixado pela ditadura na cidade. Desde o apoio à identificação de desaparecidos políticos do passado e do presente, até a formação de mais de 6 mil educadores para trabalhar o tema em sala de aula, a identificação e preservação dos mais de cem lugares simbólicos para a resistência política, a instalação de um monumento no Parque do Ibirapuera em homenagem a todos os mortos e desaparecidos políticos, incluindo os milhares de indígenas, camponeses e jovens de periferia assassinados no período.

Essas e outras ações foram reiteradas nas 36 recomendações da Comissão Municipal da Memória e Verdade em seu relatório final de 2016. Ao lado delas, várias ainda por iniciar, como a revisão dos assentos de óbitos e atestados demissionais falsos, a modernização de um serviço funerário gratuito e público, já que guardião de memórias e provas de arbitrariedades, a institucionalização de uma política municipal permanente garantida por lei, para ficar em poucos exemplos. Essas recomendações servem como referência aos programas de governo não apenas de São Paulo, mas das demais cidades dispostas a rever o seu passado, para escrever um futuro diferente, onde a democracia de fato tenha condições de se consolidar.

Frente a um presidente que mesmo antes de se eleger já fazia apologia à tortura e que não se constrange em conspirar contra o Supremo Tribunal Federal, como denuncia a matéria de Monica Gugliano para a revista Piauí de agosto último, num nítido atentado contra o princípio constitucional da divisão de poderes, as cidades podem se tornar verdadeiras trincheiras. Não se trata, evidentemente, de isentar o poder federal das responsabilidades nesta seara ou deixar de cobrá-lo, mas sim de sermos pragmáticos enquanto sabemos que os únicos passos que ele é capaz de dar serão para trás.

Se hoje nos confrontamos com as versões falaciosas que revisionistas tentam a todo momento ressuscitar a respeito da ditadura militar é porque, apesar dos inegáveis avanços das últimas décadas, estamos muito atrasados em nossa lição de casa. Ou será que quem foi às ruas pedindo intervenção militar sabe que naquele período sequer era possível reivindicar o que quer que fosse?

Ao tentar reescrever a história a próprio punho, ao arrepio de documentações, provas científicas, testemunhos e das recomendações da Comissão Nacional da Verdade, apoiadores da atual gestão pretendem desenhar um novo futuro, onde o autoritarismo, a censura, a violência contra oponentes sejam práticas relativizadas e justificáveis.

A transição completa para uma democracia sólida depende de um trabalho permanente e abrangente de memória, verdade e justiça, capaz de fazer as reparações simbólicas devidas às famílias e, ao mesmo tempo, tocar corações e mentes das novas gerações que até hoje sofrem na pele as permanências desse período inconcluso, posto que não revelado. Sem um aliado local será impossível consolidar as diretrizes dessa luta no país. Esse diálogo só é possível no chão das cidades.

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