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Os paradoxos de ser mãe em um mundo capitalista

A maternidade consciente passa pelo tormento para educar e se emancipar numa sociedade de consumo e patriarcal

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No dia 03/01/2019, Marina completou três anos de idade; por isso, recentemente completei três anos como mãe. Para além de comemorarmos o nascimento de uma criança, o olhar empático da sororidade vê também, no nascimento do primeiro filho, o nascimento de uma mãe. Há três anos nasci como mãe. Por isso, a maternidade é assunto que palpita em meu ser, constantemente surpreso com a descoberta dos inúmeros paradoxos que o mundo capitalista impõe a nós, mães. Paradoxalmente, nem mesmo a figura materna, tida na cultura ocidental como intocável e ilibada, é poupada pelo capitalismo. Assim, o objetivo do presente texto é travar uma conversa inicial, amiga e sincera sobre a complexa posição reservada por este mundo cruel e concorrencial a nós, mães, protagonistas que somos do amor e do sentimento agregador…

Não é fácil ser mãe. A idealização da posição materna, estimulada pelo patriarcado, obsta que percebamos que o exercício da maternidade não é tarefa fácil, tampouco natural. Apesar de a maternidade e a filiação serem vividas intensamente pela grande maioria das pessoas, o grau das dificuldades envolvidas na maternidade não é enxergada ou admitida: um relevante paradoxo. Dessa forma, devemos refletir sobre esse acúmulo de novas experiências que se segue à maternidade, não só para que sejamos mães suficientemente boas[1], mas também para auxiliarmos as mulheres que também optam por velejar através dos mares da maternidade… pois todas somos irmãs. É preciso que a ideia de sororidade abrace o apoio mútuo e a acolhida das mães, bem como a troca de informações e ensinamentos sobre a maternidade.

A estruturação das famílias e o papel de cada integrante mudou muito com o tempo. O modelo de famílias acompanha as transformações sociais, como podemos entender da abordagem do renomado psicanalista Donald Winnicott sobre as necessidades dos bebês com relação a suas mães:

“Até que se chegasse ao conceito atual de família, enquanto associação, sem, inexoravelmente, se ter laços de sangue, muitos modelos já foram vigentes como o correto, o sadio e até natural. No entanto, vulneráveis às transformações econômicas, sociais políticas e culturais, as famílias foram se remodelando num contexto capitalista que foi se tornando hegemônico. Conforme destaca Reis (1995, p. 2), é ‘[…] impossível entender o grupo familiar sem considerá-lo dentro da complexa trama social e histórica que o envolve’, isso porque, segundo Teixeira (2013), a estrutura familiar é determinada por uma complexa integração de fatores econômicos, sociais e culturais.”

É frequente, em nossa sociedade, um radical desamparo sentido pelas mães. São conhecidos, por exemplo, os estados mentais identificados como baby blues, depressão pós-parto e depressão pós-adoção, que se expressam muitas vezes em decorrência da solidão na qual as mães se encontram ao desempenhar os cuidados maternos, não logrando o adequado suporte emocional na relação conjugal, do que resulta uma tristeza paradoxal, pois sonhavam com uma fase de suprema felicidade e completude[2]. Em agrupamentos humanos tidos como primitivos, era usual que as crianças fossem cuidadas e educadas coletivamente, estando sob observância dos adultos no espaço ocupado pelas tribos, o que garantia a todos uma convivência comunitária e em contato com a natureza. Ou seja, crianças, mães e pais não estavam sozinhos, desfrutando inclusive da integração com o seu meio ambiente, havendo certa divisão das tarefas básicas entre todos os adultos.

Já o formato de famílias adotado a partir da Modernidade no mundo ocidental migrou para um bem mais fechado e individualista, reflexo justamente da sua base econômica capitalista[3]: em cada casa, extremamente protegida a fim de resguardar o patrimônio da família, há apenas um casal com seu(s) filho(s). Destaque-se que, alguns séculos atrás, o modelo exploratório de sociedade fazia com que os cuidados decorrentes da maternidade fossem efetuados pelos escravizados ou pelos trabalhadores da família – entretanto, se por um lado muitas vezes eram realizados com amor, por outro não se desenrolavam daqueles laços comunitários das sociedades ditas primitivas, mas das relações de exploração típicas do capitalismo, naturalizando estas no interior das famílias.

Hoje em dia, permanece esse modelo fechado e individualista. Embora atualmente as famílias tenham bem menos filhos (famílias com três filhos são vistas como numerosas), a mulher praticamente não dispõe de ajuda para desempenhar a maternidade. Não é mais tão comum que os avós morem na casa dos netos, nem mesmo próximo às suas casas, principalmente em se tratando de metrópoles (o capital alçou um tal nível quanto à circulação de bens, que metrópoles passaram a ser mundialmente comuns).

A cultura machista de afastamento do pai dos cuidados prestados à casa e às crianças é insistentemente mantida em nossa sociedade, que tolera inclusive baixos patamares de pensão alimentícia e a indiferença na visitação aos menores quando a relação conjugal acaba em separação.

Nesse sentido, ressalte-se que a mulher desempenha a maternidade praticamente sozinha e, paradoxalmente, é constante alvo de críticas por parte de outros, não apenas dos membros da família. Conclusão: para criticar, as pessoas aparecem. Que mãe já não passou por indelicadas e desnecessárias intervenções de terceiros quando estavam no exercício dos cuidados de seus filhos?

As únicas opções seguras às mães para um auxílio nesse mister, inegavelmente exaustivo, acabam sendo as babás e as creches/escolas infantis – devendo nós, mães, reconhecer as babás, as monitoras e as professoras como efetivas e substanciais concretizações da sororidade na sociedade atual, dispensando amor e cuidado aos nossos filhos por um salário que, admitamos, nunca retribui à altura a importância e o significado do seu trabalho.

Vejam outro paradoxo: como mães, consideramos que tais profissões trazem ínsitas as mais importantes tarefas que podemos imaginar; porém, são a produção de bens e o investimento financeiro que o jogo capitalista continua valorizando. E nós – mães e todas as cuidadoras – acabamos por ser mais uma peça nesse jogo, estando as últimas, sempre, sem a devida valorização financeira…

Saliente-se também que, a partir da péssima distribuição de renda verificada em nosso país, poucas mulheres de fato possuem condições econômicas para contar constantemente com uma babá, ou arcar com os gastos de uma creche/escola infantil, sem falar na grave e persistente omissão do Poder Público em não disponibilizar o número de vagas necessárias às crianças nas escolas infantis públicas. Em outras palavras, o Estado persiste na falta de cuidado que presta às mães e aos seus filhos, estimulando o desamparo materno, optando, na sua discricionariedade, por outras formas de gastos não tão essenciais.

Sem contar que, principalmente no caso de mães solteiras, o trabalho externo ao doméstico passa a ser normalmente imprescindível para a complementação da renda, o que exige a oportunidade das escolas públicas para que se propicie às mães o trabalho.

E olhem aí outro paradoxo aparecendo… fala-se em extinção/diminuição do bolsa-família, o que atingiria todas as mães que não tem qualquer opção de ajuda para cuidar dos seus filhos, deixando-as sem condições de trabalhar e sem qualquer suporte financeiro! Aliás, não se volte às mulheres, aqui, a acusação de que é exclusivamente delas a escolha de trabalhar fora. Em primeiro lugar há muitos casos em que tal trabalho é simplesmente indispensável, em razão de diversas situações, principalmente aquelas extremas econômicas. Em segundo lugar, como bem afirmado por Simone de Beauvoir, o trabalho é que pode garantir às mulheres uma independência concreta. A mulher, como todo ser humano, é projeto, alcançando sua liberdade pela sua constante superação[4].

O trabalho doméstico, repetitivo e encarcerado em si que é, não permite a sua transcendência como projeto. Relevante também a abordagem de Virginia Woolf, que trouxe à lume a locução “Anjo do Lar” para designar o protótipo da mulher dedicada à domesticidade. A autora afirma que, para uma vida saudável, é preciso combatê-lo, tendo matado-o dentro de si para conseguir praticar o seu ofício de escritora[5]. Nesse sentido, Hannah Arendt, em “A Condição Humana”[6], sustentou que é na esfera pública que o ser humano obtém reconhecimento e afirmação da sua individualidade – o que não se dá, por conseguinte, no âmbito doméstico.

Alijar as mulheres do espaço externo ao lar significa negar-lhe a individualidade, condenando-a à imanência.

Ademais, registre-se que Engels escreveu, em 1884, a obra “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, tratando dos tipos de família desde os tempos remotos, bem como da sua evolução até chegar à família patriarcal do mundo ocidental cristão, o qual, segundo o autor, é caracterizado pela noção de propriedade privada e por relações de poder e dominação, em que uma hierarquia de gênero determinava as funções sociais de cada sexo[7]. Nosso papel de mães e pais que educam meninos e meninas, ao ser cooptado pelo sistema atual, contraditória e paradoxalmente reduz o potencial dos nossos filhos como seres humanos, limitando as suas escolhas pessoais e o seu horizonte de crescimento, confinando-os aos lugares tradicionalmente ocupados pelos homens e pelas mulheres na sociedade, quais sejam, de homem dominador e mulher submissa.

Por fim, dois outros paradoxos não menos importantes. O acelerado capitalismo – ora, tempo é dinheiro! – coloca as mães em uma posição quase esquizofrênica, visto que os bebês e as crianças ainda não se inseriram na metragem do tempo em função da produção, demandando a presença da mãe de uma maneira total, entregue, sem as inúmeras preocupações externas e reivindicadoras de concretização imediata. Os filhos querem e pleiteam a mãe, participando de uma luta para retirá-la do domínio do tempo, a fim de tê-la atemporalmente. Só a inocência das crianças para abraçar tal luta, pois estamos todos e todas miseravelmente lançados às rédeas do sistema econômico mundial, não conseguindo desacelerar por completo, nunca…

E, encerrando o texto, um seríssimo paradoxo: o educar para o ser e não para o ter, em um mundo que valoriza o ser humano por suas posses e por sua superficialidade. Como fazê-lo na sociedade das aparências e do consumo? A maternidade consciente do esvaziamento do ser derivado do consumismo sem freios atormenta-se em razão desse dilema.

Ser mãe em um mundo capitalista é, de fato, conviver com paradoxos. Mas, se outro mundo é possível – mais igualitário e harmonioso –, jamais desistiremos de buscá-lo!

Uda Roberta Doederlein Schwartz é Juíza de Direito no Rio Grande do Sul, Comarca de Barra do Ribeiro. Membra da AJD. Mãe da Marina e da Vitória. Este texto é dedicado às pessoas que viveram a maternidade, e ainda a vivem, em conjunto com a autora, apoiando-a e prestando-lhe inestimável auxílio, sendo fonte de reflexão e aprendizado: Maiara Oliveira (e suas filhas Maiury, Thayná, Ketlin e Stephanie), Angélica Santos, pai Juliano Fava Machado, avós Regina Schwartz e Rejane Fava. Dedicado, por fim e especialmente, a Ana Maria Santos e a Eva dos Santos (ambas in memoriam).

Foto: Alexandre Carvalho/A2img
[1]SANTOS, Fernanda Barbosa dos. “O Desafio de Trabalhar com Famílias em Situação de Risco Social”. Disponível em http://repositorio.ufpi.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/123/Disserta%C3%A7%C3%A3o.pdf?sequence=1
[2]Tais estados mentais são, de regra, multifatoriais. Isto é, as causas aqui mencionadas não são as  únicas. Sobre o tema: “Depressão pós-parto: fatores de risco e repercussões no desenvolvimento infantil”. (SCHMIDT, E. B.; PICCOLOTO, N.M.; MÜLLER, M.C.). Disponível em http://www.scielo.br/pdf/pusf/v10n1/v10n1a08.pdf
[3]“A família é, portanto, um elemento histórico que, em intrínseca relação com a dinâmica social, se modifica. Seu modelo burguês, privado, foi germinado no início da Modernidade e seu auge situa-se na primeira metade do XIX.” (SANTOS, Fernanda Barbosa dos. “O Desafio de Trabalhar com Famílias em Situação de Risco Social”, antes citado)
[4]BEAUVOIR, Simone de. “O Segundo Sexo: Fatos e Mitos”. Tradução: Sérgio Milliet. 4ª ed. Rio de Janeiro: Difusão Européia do Livro, 1970. v.1 , p. 22/23.
[5]WOOLF, Virginia. “Profissões para Mulheres e outros artigos feministas”. Porto Alegre/RS: L&PM, 2012.
[6]ARENDT, Hannah. “A Condição Humana”. São Paulo. Universitária. 1987.
[7]OLIVEIRA, Martha Lourdes Choucair de. “Família Ocidental: A Trajetória de um Conceito na Produção Bibliográfica das Ciências Humanas”. Disponível em https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/2506/1/marthaloureschoucairdeoliveira.pdf

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