3ª Turma

Operação Lava Jato e corrupção: uma crítica da razão cínica

Cinicamente, a Constituição e o princípio da legalidade são apresentados como obstáculos à persecução penal e ao fim da impunidade. 

Foto: Isac Nóbrega
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No livro Crítica da Razão Cínica, o filósofo alemão Peter Sloderdijk inverte a frase de Marx eles não sabem, mas o fazem e afirma: eles sabem o que fazem e continuam a fazê-lo. A crítica à racionalidade cínica expõe o cinismo como uma nova face da ideologia, uma consciência que desvelou os pressupostos que determinavam seu agir “alienado” e ainda assim é capaz de justificar racionalmente tal ação. Para Sloterdijk, o mal estar na cultura contemporânea adotou uma nova qualidade e agora se manifesta como cinismo universal e difuso. A crítica perdeu o seu poder desmistificador em uma época na qual o cinismo não é mais apenas um problema moral, senão um padrão de racionalidade. 

Segundo Sloterdijk, o cinismo abdicou da sua potência crítica e assumiu a “lógica dos senhores”, infiltrando-se, assim, na raiz dos totalitarismos modernos. Dominados por uma “falsa consciência ilustrada”, professores, juristas, políticos, enfim, indivíduos que deveriam representar os ideais sociais de liberdade, passaram a exercer, cinicamente, o monopólio da mentira. Assim como ocorreu na Alemanha de Sloterdijk durante a República de Weimar, assistimos no Brasil à metamorfose do cinismo. A Operação Lava Jato é apenas mais um expoente da guinada cínica. Ela expressa o potencial imoral da moralidade, a compulsão humana pelo inumano. Parafraseando Zizek ao referir-se à ideologia, “sabemos que ela é uma ilusão, mas mesmo assim a queremos”.

Após a decisão do STF sobre a execução antecipada da pena, a força tarefa da Operação no Paraná declarou, por meio de uma nota, que a decisão do Tribunal está “em dissonância com o sentimento de repúdio à impunidade e com o combate à corrupção, prioridades do país”. Embora o artigo 102 da Constituição Federal afirme que “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição” e seja função institucional do Ministério Público zelar pelo efetivo respeito aos direitos nela assegurados (art. 129, da CF), os membros da força tarefa estabeleceram, arbitrariamente, outras prioridades para o país e suas instituições. Na visão dos procuradores, guardar a Constituição Federal e fiscalizar a aplicação da lei são, portanto, atribuições secundárias diante do combate à corrupção. O equívoco do argumento está justamente em acreditar que só é possível punir tais desvios por meio da violação do texto constitucional. Cinicamente, a Constituição e o princípio da legalidade são apresentados – justamente por quem deveria defendê-los – como obstáculos à persecução penal e ao fim da impunidade. 

 

Essa perspectiva sinaliza para a atual transformação na legitimação do direito e do processo penal. Contra o “inimigo”, as regras do jogo podem ser violadas, pouco importando os riscos dessa estratégia para a democracia. Assim, o processo penal, que no Brasil nunca foi acusatório, transformou-se em mero instrumento de condução política. De forma mais geral, as distorções oriundas de maxiprocessos como a Lava Jato tem gerado não apenas o desmantelamento do sistema de direitos e garantias fundamentais, mas produzido a cristalização dos valores pragmáticos da segurança e da eficiência.   

A fantasia ideológica garante a imunização da Lava Jato, apresentada diariamente como símbolo de moralidade e integridade, “a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro na história do país”. Infelizmente o desinteresse dos juristas pela história das ideias explica porque é tão difícil romper com o passado e tão fácil ressignificá-lo. Mente-se dizendo a verdade. A adesão à narrativa hegemônica sobre a Operação Lava Jato revela que pouco importa se realmente existem violações aos princípios do processo penal e aos direitos e garantias fundamentais. Assume-se simplesmente que “os fins justificam os meios”. 

O discurso punitivo justifica, inclusive, o autoritarismo e a violência desmedida contra aqueles que se opõem à nova ordem. O senso comum jurídico está presente nas salas de aula, nas salas de audiência, nos tribunais, enfim, em todos os espaços privilegiados que deveriam se destacar pela resistência ao conhecimento pasteurizado, esquematizado, simplificado.

Retornando a Sloterdijk, a crítica da razão cínica explicita que os juristas não são marionetes alienadas, mas sabem o que fazem e continuam a fazê-lo.

No Brasil da Operação Lava Jato, a exceção tem sido justamente observar os direitos dos acusados. O direito e o processo penal foram colonizados pelos fins políticos e a narrativa oficial perpetua o que Ferrajoli chamou de “subsistema penal de exceção”. São prisões preventivas decretadas para constranger réus a delatarem, teorias que excepcionam provas ilícitas, relativização das nulidades absolutas, banalização da justiça negocial (em especial da colaboração premiada), conduções coercitivas injustificadas, ampla aceitação de denúncias genéricas, expansão das hipóteses de responsabilidade penal objetiva etc. Tudo se torna legítimo quando a finalidade é erradicar a corrupção. 

Mais do que apenas destacar os contornos do pensamento autoritário da justiça brasileira, a Lava Jato expôs a clara vinculação do discurso jurídico dominante à ideologia da segurança nacional. No paradigma de exceção permanente, a luta contra o crime organizado acarretou a perversão substancial do princípio da legalidade. Alguns juízes e membros do Ministério Público sugerem, inclusive, uma coligação inquisitiva em favor da sociedade, dos “cidadãos de bem”. De modo muito semelhante à “Operação Mãos Limpas”, na Itália, são inúmeros os encontros operativos, trocas informais de notícias e conselhos fora dos autos e dos canais processuais. 

Presenciamos atualmente o fim do direito penal liberal e a radicalização do sistema inquisitivo. Apesar da notória dificuldade de se estabelecer uma definição satisfatória para a corrupção, se a compreendermos como “o abuso de poder condicionado por vantagens”, como propõem Greco e Teixeira, talvez seja possível concluir que a Operação Lava Jato a incorporou em suas táticas para alcançar um fim socialmente adequado e politicamente útil. Em outras palavras, a Operação rompeu com as regras do Estado de Direito com o objetivo de reprimir os desvios.

No Brasil, a tentação totalitária subjacente ao discurso de “guerra contra o crime” tem autorizado práticas juridicamente ilegítimas, porém politicamente justificadas. 

Desse panorama complexo podemos extrair algumas breves conclusões. A primeira e mais importante é perceber que a democracia pressupõe, nos termos de João Mauricio Adeodato, a fragmentação do poder, além de certa desconfiança em relação ao caráter humano. As estratégias deliberadas para dificultar o direito de defesa, sobretudo nos processos de corrupção, perpassam a suposta tentativa de tornar mais eficiente a persecução penal. Elas escancaram uma racionalidade que, sob o pretexto de acabar com a criminalidade dos poderosos, propaga o continuísmo de ideias e práticas autoritárias no Brasil. 

Por fim, se faz necessário reafirmar o óbvio: este artigo não assume a corrupção como um valor, muito menos desconsidera a relevância de instituições que são pressupostos do Estado Democrático de Direito. Porém, para punir é necessário garantir. Se por um lado seria hipocrisia negar os incontáveis e nocivos casos de corrupção no país, por outro, nunca foi tão importante resistir à generalização do cinismo, uma espécie de mentalidade coletiva. Em tempos de notória instrumentalização da justiça penal para fins políticos e de deterioração dos direitos humanos em prol do “bem comum”, a grande revolução será rejeitar o cinismo da barbárie punitiva que “está passando o Brasil a limpo”.

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