3ª Turma

O mito da universalidade do sistema penal

Historicamente, o Direito Penal sempre se volta ao inimigo social de determinada época para fins de disciplina.

Foto: Marcos Santos
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A grande promessa do sistema de justiça criminal é a proteção eficaz de bens jurídicos considerados socialmente importantes – a vida, o patrimônio, a dignidade sexual, a saúde pública, a honra, dentre tantos, tantos outros. Assim, o indivíduo que afronta determinado bem jurídico deve, através do sistema penal, internalizá-lo e aprender a respeitá-lo – em uma verdadeira cruzada contra o mal em si, personalizado na figura do criminoso.

Ocorre que não existe uma realidade ontológica para o crime: trata-se de uma criação da lei penal que tipifica condutas e sanções, inexistindo qualquer naturalidade no conceito, mas sim valores artificiais e mutáveis atribuídos a determinadas condutas. É a lei que cria o criminoso, muito embora o discurso do jurista argumente que seus institutos surgem de naturais impulsos éticos ou morais.

Bens jurídicos a serem protegidos e as respectivas condutas criminalizadas são escolhidos de alguma forma. Evidentemente, tal escolha não se dá a esmo. A chamada criminalização primária se dá no momento de elaboração das leis penais incriminadoras, pretensamente abstratas e gerais – porém recheadas de concretos interesses que permeiam o jogo político. 

A criação de tipos penais tem uma relação direta com os bens jurídicos que as camadas dominantes de determinada sociedade pretendem preservar. Historicamente, o Direito Penal sempre se volta ao inimigo social de determinada época para fins de disciplina – tendo inclusive sido as mulheres alvo principal do primeiro tratado criminológico no momento histórico da caça às bruxas.

Nessa linha, a estrutura repressora de Estado, comandada pela camada social com maior acesso aos órgãos de poder político e midiático, invariavelmente tende a criminalizar mais condutas atribuídas a camadas sociais mais distantes destes núcleos.

E uma vez tipificadas as condutas tidas como crimes, isto é, finalizada a etapa de criminalização primária, caberá às agências do poder punitivo (aquelas relacionadas à aplicação da Lei Penal, principalmente as polícias e o Poder Judiciário) exercer sua função de identificar as condutas infratoras das leis – a chamada criminalização secundária.

 

Ocorre, porém, que o projeto de persecução penal desenhado é intrinsecamente impossível. O processo de criminalização primária, que se dá no âmbito legislativo, é um programa tão intenso que jamais, em país algum, se pretendeu levar à cabo em toda sua extensão – ou mesmo uma parte considerável.

A título de exemplo, condutas sociais razoavelmente corriqueiras (inclusive às classes mais altas) como porte de entorpecentes, compra de moeda estrangeira no câmbio negro, aquisição de mídias falsificadas, direção de veículo após a ingestão de bebida alcoólica ou utilização de atestados médicos de doenças inexistentes, são criminalmente tipificadas, algumas com penas bastante elevadas. Não obstante, apenas uma minúscula fração dos crimes cometidos são objeto de persecução penal. Tal disparidade é inevitável, a ponto de essa criminalidade oculta receber o nome técnico de cifra negra.

A cifra negra é reconhecida pacificamente como uma realidade, no Brasil ou em qualquer sistema penal, como a ele intrínseco. Porém, em países periféricos, em que a precariedade socioeconômica aliada a longos períodos de autoritarismo político contribuiu para a formação de sistemas ineficientes, desiguais e violentos, tal disparidade é agravada.

A existência intrínseca da criminalidade oculta, inclusive, sempre será apta a ser transmutada em capital político, nas eleições e nos programas policialescos – apresentando-se as figuras do que Zaffaroni chama de “empresários morais”. Segundo ele, o empresário moral pode ser um político em busca de admiradores, um grupo religioso em busca de notoriedade, ou um apresentador de televisão em busca de audiência. Estes, com a inevitabilidade da cifra negra, sempre terão a seu dispor extenso material para seus empreendimentos moralistas.

Nesse contexto, crimes praticados por camadas menos favorecidas socialmente são mais visíveis, posto que têm seu espaço de realização nas ruas e adjacências, bem mais acessíveis às agências do poder punitivo. Por isso, a demanda populista por uma polícia mais ostensiva nas ruas afetará somente as condutas praticadas por esta camada da população – consequentemente, produzindo mais mortes em confronto.

As abordagens policiais em flagrante são a forma mais fácil às agências de demonstrar sua eficiência, em números positivos de desempenho: se o dever da polícia é produzir, se lhe é cobrado desempenho, resta a ela prender o tipo de delito mais facilmente identificável.

Aqui, acrescentam-se estereótipos do criminoso: a clientela preferida do sistema penal é o jovem, negro e pobre. E não por acaso: suas condutas são mais criminalizadas primariamente, suas feições correspondem à do criminoso “tradicional”, sua educação só lhe permite a realização de ações ilícitas rudimentares, de fácil detecção, e seu acesso aos poderes político, econômico e midiático é extremamente reduzido. Crimes praticados normalmente por classes mais abastadas não raro são revestidos de ferramentas mais sofisticadas, exigindo maior aparato estatal para fins de investigação.

O racismo estrutural do sistema penal não aparece no discurso jurídico aberto (posto que invisível no momento da criminalização primária), mas sim no momento posterior da seleção concreta dos criminosos. Trata-se, inclusive, de uma mudança estrutural em relação a outros discursos jurídicos que disputaram hegemonia, a exemplo da teoria Lombrosiana, que colocava abertamente a premissa da inferioridade racial.

Além disso, a estigmatização da pobreza e da negritude gera o efeito contrário: o afastamento da riqueza e da raça branca do estigma, apartando-as ainda mais da criminalização secundária. No que tange à riqueza, em outro polo, cria-se um sentimento difuso de indignação contra a impunidade dos crimes de colarinho branco. Surge uma demanda por uma certa compensação da seletividade penal, gerando respostas simbólicas com a criação de novos “bodes expiatórios” das classes mais altas, e criando-se a ilusão de que esta criminalidade está sendo combatida. Contudo, a nível de criminalização secundária, o sistema penal segue preservando inúmeros espectros de impunidade (a exemplo do pagamento do crédito tributário extinguir a punibilidade dos crimes desta esfera).

Mais do que isso, crimes relacionados a classes mais altas não criam carreiras criminais e não possuem efeito estigmatizante, tornando mais fácil aos eventuais membros das classes dominantes enquadrados no sistema frequentarem quase que livremente os espaços jurídicos do lícito e do ilícito. O efeito não é o mesmo para negros e pobres, mais suscetíveis ao processo de etiquetamento social, pelo qual o estigma de criminoso condicionará o indivíduo rotulado a sustentar o rótulo, dificultando sua reinserção.

Constata-se, portanto, a impossibilidade da premissa da universalidade do direito penal, e que os princípios ou valores nos quais o sistema se apoia (a igualdade, a segurança, a justiça) são radicalmente deturpados, na medida em que só se aplicam àquele número ínfimo de situações que são os casos registrados. O sistema de persecução acaba por realizar-se como ferramenta de marginalização. Estes argumentos costumam ser utilizados pelas correntes abolicionistas, para os quais um sistema que rege apenas casos esporádicos (porém não aleatórios) é absolutamente desnecessário.

Tal sistema de poder punitivo é ainda enaltecido por um certo clima de individualização, baseado na competição e na responsabilidade individual irrestrita pelo próprio destino, sem ser atribuída qualquer responsabilidade à coletividade. Evidentemente, uma consequência do avanço neoliberal. Uma das consequências do projeto do Estado neoliberal em ascensão, nesse sentido, é sua submissão e fragilidade frente ao poder econômico, em contradição com sua enormidade punitiva.

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