3ª Turma

O juiz de garantias e a ilusão do sistema acusatório

A mentalidade inquisitória é incapaz de perceber a legitimidade de institutos garantistas.

Foto: Gil Ferreira
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Este mês entrarão em vigor diversas alterações na legislação penal brasileira decorrentes da Lei 13.964/2019, conhecida como “Lei Anticrime”. Uma das modificações mais discutidas e polêmicas é o “Juiz das Garantias”, responsável pelo controle de legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais dos investigados e conduzidos, competindo-lhe, basicamente, uma atuação prévia ao processo, ou seja, até o momento do recebimento da denúncia. Com a decisão que recebe a denúncia, ocorrerá, portanto, a cisão funcional, com a atuação de outro magistrado na fase processual, evitando-se, assim, a contaminação dos atos probatórios realizados oralmente pelas decisões antecedentes. Além de ampliar o controle sobre a legalidade dos atos pré-processuais, o instituto se propõe a reduzir os danos aos direitos dos indiciados. A proposta é antiga e já existe em outros países, mas gerou inúmeras críticas no Brasil, inclusive do próprio Ministro da Justiça e de órgãos de classe, como a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).   

De acordo com a Lei 13.964/2019, o Juiz das Garantias aplica-se a todos os procedimentos, exceto aos Juizados Especiais Criminais (art. 3º-C). Outro dispositivo importante da lei é o art. 3º-A, que prevê expressamente: “o processo terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase da investigação e a substituição da atuação probatória do órgão da acusação”. A proposta visa à preservação da imparcialidade do magistrado e reforça a necessidade de explicitar a estrutura acusatória do processo penal brasileiro, evitando que os juízes comprometam a sua isenção para julgar a partir do envolvimento com a parte proponente de medidas pré-processuais invasivas e cautelares, da produção antecipada de provas e da homologação de acordos de colaboração premiada, por exemplo. 

Se analisarmos o instituto desde a perspectiva do sistema de direitos e garantias constitucionais, ele pode ser considerado um avanço, um mecanismo de redução dos danos gerados pelo sistema penal. Entretanto, é importante observar que a mera alteração normativa e a afirmação de que “o processo terá estrutura acusatória” (art. 3º-A) não serão capazes de transformar as estruturas do processo penal e tampouco a realidade da justiça criminal brasileira. Basta lembrar que o “pacote” ou “lei anticrime” busca exatamente maximizar o poder punitivo estatal, restringir os direitos e garantias fundamentais e promover o encarceramento sob a justificativa de “combater a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência à pessoa”. 

O processo penal brasileiro precisa de mudanças e atualizações? Sem dúvida. O problema é que em tempos de Lei Anticrime, essas alterações se revestem de projetos messiânicos e ilusórios de promoção da segurança pública, como se o direito penal fosse capaz de resolver todas as mazelas sociais.

A previsão legal expressa quanto à natureza acusatória do processo penal brasileiro e a consagração do Juiz das Garantias são medidas interessantes, porém fadadas ao fracasso.

Talvez a nossa posição seja excessivamente pessimista, mas ela se justifica por duas razões. O primeiro motivo foi exposto e aprofundado em nosso livro “Processo penal e catástrofe”, resultado de tese doutoral na qual desenvolvemos a ideia de que o modelo de inquérito, como epistemologia da verdade, configura a principal fonte dos sistemas processuais da modernidade, razão pela qual, tanto no plano teórico quanto na experiência prática, o processo penal acusatório consiste em uma impossibilidade lógica, epistemológica e política. 

A segunda razão do nosso ceticismo quanto à capacidade transformadora do Juiz das Garantias e à consolidação do processo penal acusatório está na ausência de uma autêntica ruptura no tocante ao imaginário social sobre o crime, a criminalidade e a punição. Os efeitos produzidos pelas alterações legislativas possivelmente ficarão adstritos ao âmbito normativo, tendo em vista o cenário de permanência da mentalidade inquisitória e de resistência das agências de repressão penal ao processo de democratização, conforme observou Salo de Carvalho em pesquisa intitulada “O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo”.

As inúmeras críticas de associações de magistrados e a posição conservadora de parcela considerável da Magistratura são apenas um sinal de que os atores processuais demonstram-se reticentes a efetivar mudanças determinadas pela Constituição Federal ou que concretizem direitos constitucionais. A mentalidade inquisitória é incapaz de perceber a legitimidade de institutos garantistas, de modo que a postura desses grupos acaba constituindo um canal de expressão da criminalização e do encarceramento. 

O Juiz das Garantias é percebido por muitos magistrados como um retrocesso não porque esteja maculado com “evidente vício constitucional” ou por “depreciar a figura do magistrado” em virtude de assumir a premissa genérica e indiscriminada de que o juiz natural seja presumidamente suspeito e não tenha condições de julgar um processo com imparcialidade, senão porque restringe poderes e contesta a “vontade de punir” patológica e explícita dos atores do sistema punitivo nacional.  

Logicamente existem focos de resistência e exceções à mentalidade hegemônica. São magistrados e membros do Ministério Público que diariamente se opõem ao senso comum teórico, resistem à opinião pública e defendem a Constituição Federal e a construção de um sistema menos degradante. Como expôs Salo de Carvalho, o problema não está propriamente nas pessoas, mas nas formas pelas quais os locais do poder punitivo, as instituições, capturam esses sujeitos e desenvolvem a mentalidade inquisitória. 

Embora o art. 3º-A da Lei 13.964/2019 seja incapaz de concretizar o processo acusatório no Brasil e o Juiz de Garantias possa acabar cumprindo o papel de legitimar os excessos punitivos por meio de uma figura meramente simbólica e reprodutora da cultura judicial inquisitória, devemos compreendê-los no contexto de uma tentativa de reduzir os danos do punitivismo e diminuir os índices de encarceramento. Mais do que isso, é pura ilusão.

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