3ª Turma

O giro de Gilmar

No STF, Gilmar é a mais eloquente pedra no sapato do lavajatismo.

Ministro Gilmar Mendes
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Há quem se assuste com o cavalo de pau dado por Gilmar Mendes em relação a Lula e ao PT nos últimos tempos. Adversário histórico da esquerda, Mendes vem sucessivamente votando de forma favorável à libertação do ex-presidente Lula, a exemplo do que aconteceu na última quarta-feira, 26 de junho.

No STF, Gilmar é a mais eloquente pedra no sapato do lavajatismo. O pano de fundo de suas críticas é quase sempre a concepção de mundo a qual Robespierre tentou dar forma em 1789. “Esse sujeito fala com Deus?”, perguntou enquanto imputava a Moro a perversão constitucional de transformar prisões cautelares em definitivas para forçar delações premiadas – uma prática equivalente à tortura, segundo ele, que também já chamou os procuradores da Lava Jato de “cretinos” e ignorantes quanto à noção de processo civilizatório.

Gilmar está certo. O cretinismo da turma Dallagnol já havia ficado claro na apresentação daquele infame powerpoint. A raiva que os procuradores têm de qualquer esboço de Iluminismo se tornara uma indisfarçável espinha purulenta no nariz da força-tarefa quando Lula virou réu com base em devaneios morais e convicções juvenis (vale lembrar de um Dallagnol vacilante e choroso quanto às provas que tinha contra o ex-presidente, ocasião em que recebeu mimos motivacionais de Moro de acordo com as conversas divulgadas pelo The Intercept Brasil).

 

Mas o almoço de Gilmar não é de graça, diria Milton Friedman, guru intelectual de Paulo Guedes. É certo que o ministro não age por princípios em suas investidas contra o estado de exceção instaurado pela Lava Jato; foi dele a liminar que impediu que Lula assumisse a Casa Civil, deferida após a divulgação dos áudios da conversa entre ele e Dilma por Moro. Sua ficha em relação à defesa de interesses do PSDB também não é nada republicana. É nela onde aflora de vez o parlamentar de toga.

Quando barrou a nomeação de Lula, a avaliação que Gilmar fazia da conjuntura se alinhava com a do grão-tucanato: ao PSDB, antípoda tradicional do PT, caberia a fatalidade de não deixar esfriar a cadeira desocupada por Dilma Rousseff. Acabaram cometendo os mesmos erros que os social-democratas alemães no início do século XX, que acreditaram que, uma vez varrendo os comunistas do mapa, seriam eles, e não os bufões caricatos do nazismo, que ganhariam espaço.

Gilmar Mendes foi nomeado ministro em 2002 por FHC. Sua fama era a de leão de chácara dos tucanos, o que gerou intensos protestos da comunidade jurídica. “Degradação do Judiciário” foi como o professor Dalmo Dallari classificou sua indicação, para termos dimensão da polêmica ascensão do Advogado-Geral da União conhecido pelos arranca-rabos em que se metia para guardar as costas de seus padrinhos.

Os tucanos, todavia, são hoje uma força inexpressiva. O encolhimento da agremiação posicionou Gilmar entre o bolsonarismo e quem, na ausência de uma direita liberal e republicana organizada (quem pensou no NOVO merece sentar numa urtiga), melhor detêm condições de enfrentá-lo: o PT, com quem tanto se engalfinhou, e a esquerda de modo geral. Na Segunda Guerra, britânicos e norte-americanos se aliaram aos soviéticos para enfrentar o Eixo. Não há surpresa nessa aproximação circunstancial.

Trata-se no fim das contas uma opção pragmática e em certa medida coerente. Aderir, por ação ou omissão, às trevas de gente como Ernesto Araújo e Damares seria uma indesejável mácula na biografia de alguém que tem na sua conta votos como o favorável à descriminalização não apenas do uso da cannabis, mas de todas as drogas. Se a maior parte de seus colegas de corte abraçaram a conveniência de se portar como chaveirinhos do bolsonarismo, Gilmar, assim como Lula, parece ter a consciência de que a coruja só levanta voo ao entardecer e que a história espera os acontecimentos esfriarem para distribuir suas cadeiras.

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