Justiça

O fantástico mundo do ministro Fachin

Em entrevista recente ao jornal Folha de S.Paulo, o ministro mostrou-se uma caricatura

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Edson Fachin foi escolhido ministro do STF em 2015 pela então presidente Dilma Rousseff. Na época, Dilma perdera parte de sua base social por ter adotado um programa econômico diverso do que apresentou em campanha, submetendo-se à agenda teológica do mercado que propaga a austeridade fiscal como solução para tudo no país.

Advogado e professor universitário, Fachin fizera campanha para Dilma em 2014 e tinha um histórico de proximidade com a esquerda e com movimentos sociais, em especial o MST. Sua indicação foi recebida com celebração por estes setores (e com alguma histeria por parte da direita que se tornaria base do bolsonarismo). Diante de tantas concessões, Dilma sinalizara à militância, buscando, de alguma forma, mantê-la coesa.

Uma vez no STF, Fachin se mostrou disposto a colaborar com quem torcera o nariz para sua nomeação. Sua adesão ao lavajatismo, muitas vezes de forma caricata, integrou-o à cruzada moral e antipetista que contribuiria para que Bolsonaro chegasse ao Palácio do Planalto.

A entrevista que deu à Folha de S. Paulo no último dia 9, ele expôs várias dessas caricaturas. Para Fachin, o lavajatismo irá continuar a despeito do fim da força-tarefa da operação, anunciado recentemente. A “doença infantil do lavajatismo”, que só vê defeitos ou qualidades na operação, esta sim é que estaria fadada ao fim. Dos seus escombros, nasceria uma versão pura do moralismo messiânico, da flexibilização de garantias constitucionais e da criminalização da política que tão profundamente marcaram a operação Lava Jato.

 

Fachin vai do abstrato ao abstrato, pulando de um falseamento para outro de modo a evitar o mundo real. É este método que permite ignorar a chave para compreender a natureza e os propósitos da Lava Jato, amplamente confirmados de 2016 para cá: acuar a esquerda, cancelar Lula politicamente e dar condições para o aprofundamento de um projeto que busca realinhar o Brasil aos EUA, desarticular as relações Sul-Sul, BRICS e afins, promover o desmonte e a rapina do Estado brasileiro.

Crer que a Lava Jato se abastecia de propósitos nobres e heroicos é fazer pouco caso do conteúdo das mensagens da Vaza Jato, em particular daquelas cujo acesso foi liberado recentemente pelo ministro Ricardo Lewandowski. Fachin não está interessado nelas, pois impõem que renuncie ao escape da realidade que ganha corpo no discurso fácil – e mentiroso – do combate à corrupção.

Esse escape está presente em toda a entrevista. Questionado com qual tipo de corrupção se preocupa, Fachin responde: “a corrupção da democracia, ou seja, com o conjunto das circunstâncias que mostram que o Brasil está vivendo um processo desconstituinte”. Mas foi a Lava Jato, defendida por ele com entusiasmo, que corrompeu a democracia ao agir para que o franco favorito na eleição presidencial de 2018 fosse sumariamente rifado do jogo.

O ministro também não enxerga a relação de causa e efeito entre esse fato e o que chama de “processo desconstituinte”, uma vez que Temer e Bolsonaro foram, sob as  bençãos do lavajatismo, colocados onde estão exatamente para levar abaixo o que a Constituição de 1988 tem de direitos sociais, como o SUS e a previdência social. Prender Lula foi essencial para que o que se iniciou com o golpe de 2016 não fosse interrompido.

Ministro Edson Fachin. Foto: Nelson Jr./STF

A remilitarização do governo civil faz parte das preocupações de Fachin, assim como as intimidações dirigidas aos demais poderes, as “declarações acintosas de depreciação do valor do voto”, as palavras e ações contra a liberdade de imprensa e o incentivo às armas e à violência. O entrevistado emenda tais preocupações com uma frase de bolso: “o Brasil precisa de saúde e educação, não de violência nem de armas”. Estranho que ele não veja relação da Lava Jato com a criação da atmosfera que tornou possível a aprovação da emenda do teto de gastos, que durante seu vigor sugará algumas centenas de bilhões dos orçamentos da saúde e da educação.

Em seguida, enumera a recusa antecipada do resultado eleitoral e a naturalização da corrupção de agentes administrativos como os dois últimos sintomas da “corrupção da democracia no Brasil”. Parece óbvio que se trata de uma lista de consequências da chegada do bolsonarismo à Presidência da República, o que não seria possível sem a aliança com o lavajatismo, sacralizada quando Moro aceitou o convite de ser ministro da justiça. Pouco tempo antes, o ex-juiz, às vésperas da votação no primeiro turno, requentou a delação de Palocci, tornando-a pública em um momento decisivo da campanha. “Moro me ajudou politicamente”, reconhece o próprio Jair Bolsonaro. O Ministério Público Federal, mesmo com suas frações dominantes situadas no campo ideológico do bolsonarismo, já havia a rejeitado por ter “muita fofoca”.

Que os procuradores da força-tarefa torciam explicitamente para a eleição de Bolsonaro, não havia dúvidas – mesmo antes da divulgação das mensagens. De “tiro na cabeça” de Lula e referências à CIA ao deboche em relação ao trágico falecimento do neto do ex-presidente, o que fica claro é que o lavajatismo não é mais do que um bolsonarismo que passa desodorante. Por meio dele, a lógica das milícias adentra sem pudor no sistema de justiça.

Fachin não é sensível à origem dos fatos que julga preocupantes. Talvez pelo fato do próprio ter contribuído para que chegassem ao seu atual estado. Seu duplipensar consegue conjugar o louvor religioso ao lavajatismo a vulgaridades do tipo “é preciso defender a democracia, proteger a democracia e proteger o sistema eleitoral brasileiro”. Ainda na entrevista, ele dá de ombros à maciça presença de militares no governo, ensaboando sua resposta com um viés protocolar típico de quem está preocupado apenas em propalar jargões: “aparentemente o que se coloca em militares da ativa que são convocados para funções políticas de governo, é um sintoma, um indício que preocupa”.

Fachin parece ter mudado de opinião, despertando o democrata adormecido diante da revelação de que o famoso tuíte do General Villas Bôas que intimidou o STF antes do julgamento do habeas corpus de Lula em 2018 fora escrito, para a surpresa de quase ninguém, em articulação com o alto comando da caserna.

O tom mudou. Em nota, Fachin afirmou “ser intolerável e inaceitável qualquer forma ou modo de pressão injurídica sobre o Poder Judiciário”, sendo tal declaração “gravíssima” por atentar “contra a ordem constitucional”. Em sua conta no Twitter, o general Villas Bôas debochou: “3 anos depois”. O deputado bolsonarista Daniel Silveira também reagiu à nota de Fachin. Após gravar um vídeo ofendendo e ameaçando ministros do STF, teve a prisão decretada pelo ministro Alexandre de Moraes.

Lavajatismo e bolsonarismo podem até ter suas rusgas, expostas na medida em que a força-tarefa perdeu sua utilidade ao contribuir para a interdição dos direitos políticos de Lula e para a eleição de Jair Bolsonaro. Entretanto, o laço espiritual que os une permanece firme e forte. Sua argamassa é, precisamente, a “corrupção da democracia” e o “processo desconstituinte” denunciados por Fachin.

Não há como defender a democracia e permanecer ao lado de quem se propõe a destrui-la.

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