3ª Turma

O custo do cuidado é sempre menor que o custo do reparo

Mulheres negras, em situação de rua, maternidade e a guerra às drogas.

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Ouvimos por aí diversas versões de uma maternidade saudável, exemplar, em que a mulher ao descobrir-se grávida – mesmo sem ter planejado engravidar – desenvolve uma dinâmica de cuidado para si e para a criança que está vindo ao mundo, caso essa deseje. Mas vamos lá! Pela perspectiva do que compreendemos enquanto cuidado, quais caminhos essa mulher deve seguir via de regra? Fazer consultas, exames, boa alimentação, procurar suprir algum déficit de ferro, descansar, acessar suas redes familiares, amigos e amigas, enxoval, chá de bebê e todos os outros procedimentos necessários, nessa lógica de cuidado. No entanto, antes de se pensar na chegada da criança, é a mulher, este corpo em movimento, que, composto por memórias e trajetórias, está em contínuo movimento para que essa experiência possa ser realizada, inclusive no processo de formação – os nove meses de gestação. E quais possibilidades algumas mulheres têm para que este movimento aconteça e se adeque aos princípios de saúde, bem-estar?

Bom, não custa fazer uma breve retrospectiva do que na minha monografia sobre “Experiências abortivas entre Mulheres Negras de Salvador/BA” descrevo como Trajetória Reprodutiva: uma pesquisa pelo qual pude contar com oito colaboradoras e através de diálogos compartilharam comigo suas experiências reprodutivas e os fatores pelos quais as levaram a recorrer ao aborto. Óbvio, que nem todas tiveram as mesmas justificativas, entretanto, alguns contextos se repetiram mesmo nas diversidades de narrativas, inclusive, quando o assunto em questão era sobre o caminho percorrido em seus itinerários abortivos.

Nesta pesquisa o que trago enquanto “trajetória reprodutiva” diz respeito ao processo desenvolvido e compreendido por cada mulher a partir de suas experiências reprodutivas, sobre os nascimentos e os não nascimentos devido a fatores que contribuíram para que estas mulheres não pudessem trazer novas vidas ao mundo, ainda que quisessem. Muitas das colaboradoras estavam desempregadas, outras narram uma trajetória sexual marcada por violências e estupros, que tiveram por consequência a gravidez, abandono do parceiro, ou a perda do mesmo por ter sido baleado na porta de casa em ação da PM em seu bairro.

Como bem afirma Angela Davis em seu livro “Mulher, Raça e Classe”, capítulo 12, ao tratar sobre os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres negras e latinas, ao recorrerem aos abortos, elas não estavam esperando se livrar da gravidez, mas sim da dor de trazer ao mundo uma criança em situações miseráveis e da repetição de ciclos pelos quais já estavam cientes da possibilidade de os seus passarem. Situação pela qual não estava muito distante da trajetória reprodutiva que as mulheres negras escravizadas passavam, pensar como os abortos auto induzidos e infanticídios eram recorrentes em função do desespero em que se encontravam as mulheres negras escravizadas por gerarem e criarem filhos e filhas nas condições opressoras e brutais que viviam. 

 

Trazendo para hoje, para o nosso cotidiano, as reflexões de Davis, e as reflexões que apresento sobre fatores que impedem que novas crianças negras venham ao mundo, é de suma importância o questionamento sobre a situação em que essas mães se encontravam antes de não terem as devidas condições de cumprir o plano desejado pela sociedade e, cobrado na mãe, a vinda de uma criança e o cuidado que ela, especificamente ela, tem que ter para que esta criança nasça e posteriormente tenha condições de exercer a maternidade.

Não contente em acompanhar mulheres negras periféricas em suas trajetórias reprodutivas, e suas experiências abortivas, em 2019 expandi minha pesquisa para “Trajetórias Reprodutivas de Mulheres em Situação de Rua: Memórias do Corpo, da Sexualidade e da Reprodução”, na própria cidade da pesquisa anterior, em Salvador – pesquisa em curso. Ao chegar em campo, ou permanecer em campo, pois se trata dos locais em que fazem parte do meu cotidiano, ao acessar mulheres em situação de rua e ser acessada também por elas, percebo que para as mesmas o aborto era apenas a “bica d’água” como bem cita Luiza Bairros ao falar das reivindicações das mulheres negras e pobres. Se de um lado existe toda uma criminalização das mulheres que abortam, principalmente as mulheres negras e pobres que abortam clandestinamente em portas de açougue e fundos de quintais e estão mais propícias a serem condenadas por isso, por outro lado existe toda uma negação dos abortos das mulheres em situação de rua, essas que não necessariamente me narram sobre abortos planejados, mas que a situação de vida pela quais estão submetidas já as colocam em situação de risco e poucas são as possibilidades que essa mulher terá para usufruir de uma gravidez saudável e  “exemplar”. 

No decorrer da pesquisa, os abortos entre as mulheres em situação de rua, já não foi o assunto principal, mas sim o que antecede a gravidez, o processo de gestação, quando este ocorre, e a tentativa de permanecer com a criança pós nascimento em condição de rua. 

Saindo da mulher negra e periférica para a mulher negra em situação de rua, a trajetória reprodutiva dessas duas categorias, mesmo ganhando perspectivas e vivências diferentes, ainda que estes caminhos se cruzem em muitos fatores, a guerra contra estes corpos tem um suporte que abandona toda a lógica de cuidado que trago no início do texto para aqueles e aquelas que até compreendem a necessidade que a mulher ao engravidar possui para ter uma gestação saudável. Essa perspectiva é totalmente desprezada quando se trata da mãe, preta, em situação de rua, que todos os dias possui seus direitos violados, que é arrastada pelos cabelos pela PM, mesmo estando grávida. Um suporte pelo qual é fornecido pelo plano genocida da “guerra às drogas”. Não cuidam das mães, mas tomam suas crianças.

Crianças pelas quais o Estado Brasileiro não se preocupa se essas têm condições de vir ao mundo ou não, pois se fosse o contrário iriam focar nas condições miseráveis que vivem essas mulheres, já que é através delas que essas vidas podem existir. 

O processo de desumanização dessas mulheres por serem associadas a “cracudas”, “viciadas”, “drogadas” e outros processos de estigmatização associados ao uso de drogas ilícitas só legitima o abandono dessas mulheres pelo Estado, que, por outro lado, incentiva a criação de políticas defasadas e já compreendidas como não aplicáveis à realidade. Havendo também ameaças de cortes em programas de redução de danos, demissão de profissionais que estão no cotidiano dessas mulheres e, que, de alguma forma, contribuem no processo de cuidado e acolhimento, não só dela, mas de toda família. 

A guerra às drogas no Brasil configura um cenário que pune ao invés de cuidar. Hoje, para a grande maioria, ao se falar de pessoas em situação de rua, seus corpos estão diretamente associados às questões das drogas ilícitas e seus usos, sendo estes corpos mais alvos de medidas punitivistas do que de medidas que se pensem em Políticas Públicas eficazes que correspondam de fato às demandas dessa população.  

A retirada das crianças das mães em situação de rua já é uma medida claramente punitivista e proibicionista, uma vez que despreza todos os fatores que citei acima, como o cuidado que antecede até mesmo a possibilidade dessa mulher ter engravidado e ter conseguido ter este filho em condições de total vulnerabilidade social, o que, ao meu ver, representa, sobretudo, a resistência dessas mulheres a uma necropolítica que tenta eliminar pessoas negras e pobres antes mesmo dessas virem ao mundo, começando por propostas de políticas higienistas.

Uma das mudanças no Estatuto da Criança e do Adolescente, introduzida pela Lei nº 13.257/2016, prevê que “Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família …assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”, o que elimina a possibilidade de se criar casas de acolhimento familiar, políticas que se pensem nos traumas que geraria para essa mãe ainda em puerpério a retirada de seus filhos ainda na maternidade e seus encaminhamentos para o acolhimento institucional. O que é por si contraditório, pois o Estado também deveria se preocupar em como uma criança deve crescer em um ambiente livre de violências cometidas pela próprio braço armado do Estado, livre da fome, livre da não assistência e programas de redução de danos, sem nenhum projeto de moradia e com políticas pelas quais não facilitam o acesso destas ao acompanhamento médico ou até mesmo a possibilidade de ser cuidada para poder cuidar.

Sobre as crianças e não romantização dos cuidados que a estas devem ser considerados, de acordo com a Lei da Primeira Infância (Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016) é prioridade absoluta assegurar os direitos da criança, do adolescente e do jovem, o que implica no dever do Estado de estabelecer políticas, planos, programas e serviços para a primeira infância que atendam às especificidades dessa faixa etária, visando a garantir seu desenvolvimento integral. Fornecendo apoio às famílias, buscando a articulação das áreas de saúde, nutrição, educação, assistência social, cultura, trabalho, habitação, meio ambiente e direitos humanos, entre outras, com vistas ao desenvolvimento integral da criança. Segundo essa mesma lei “A manutenção ou a reintegração de criança ou adolescente à sua família terá preferência em relação a qualquer outra providência…”, ou seja, a retirada da guarda é caso de última medida, no mais, é plausível manter essas crianças com seus genitores dentro das condições possíveis e assistidos pelos programas, e políticas públicas que lhes são de direito.

Dos abortos cometidos por mulheres negras periféricas, mesmo sem ter a opção de exercer a maternidade, pela falta de direitos que não as alcançam, e são penalizadas por recorrerem a métodos e substâncias ilícitas – mesmo muitas já sendo punidas ao perder a vida – até a mulher negra em situação de rua que é totalmente invisibilizada no processo de existência na rua e gestação, e ganha visibilidade a partir de seu uso de drogas, configura uma política de não cuidado: uma política de guerra a essas mulheres, seus territórios e comunidade, disfarçado de guerra às drogas, pois é a partir dessa justificativa que se desmantelam lares, tomam suas crianças, matam seus pais, punem suas mães usuárias, encarceram e, por final, não cuidam. Sabiam que as drogas eram apenas uma desculpa? Claro que sabiam! Nessa lógica, o custo do reparo, será sempre maior, em relação ao custo do cuidado! 

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