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O ano em que a democracia tropeçou

Entre o espanto e o choque precisamos recuperar a inspiração para imaginar o mundo a partir da clave da esperança e não da frustração

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É difícil contemplar o encerramento de 2018 sem um aperto no peito e um sentimento de que chegamos ao fim de uma longa transição, que nos trouxe da ditadura para a democracia, sem plena confiança no que nos espera adiante. O aperto vem da lembrança da noite de 14 de março, quando fomos tragados pelo turbilhão de dor e indignação que se seguiu ao assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, no Centro do Rio de Janeiro.

O ano da graça de 2018 termina sem que saibamos quem matou e mandou matar Marielle e Anderson, com boa parte das principais lideranças política presas ou ameaçadas de prisão – inclusive o ex-presidente Lula, o atual presidente Temer, dois ex-governadores do Estado do Rio de Janeiro e muitos outros –, vítimas de investigação, conspiração ou as duas coisas juntas. E diante de nós um universo de incertezas sobre o futuro da democracia brasileira e da ordem de direitos consagrada pela Constituição de 1988. Para quem viveu esse período com uma pitada de perspectiva histórica é difícil não pensar no encerramento de um ciclo.

Tempos de renovação

Marcha das Mulheres Negras (Tânia Rwgo/ABr)

Os últimos anos no Brasil foram marcados pela emergência de novos atores políticos que se fizeram notar pela defesa de seus direitos e também pelo questionamento das estruturas de poder vigentes. Foi um período em que vimos como nunca a juventude das periferias, as mulheres negras, o feminismo e as novas formas de lutas ocuparem as ruas e as redes sociais com suas demandas por uma nova política. Marielle encarnava a novidade e a renovação, convidava ao diálogo, apostava na capacidade de mudanças das instituições, acreditava que todos e todas temos o direito de viver e amar como desejamos.

A sua covarde execução e as dúvidas que pairam até hoje sobre as circunstâncias e os responsáveis pelo assassinato gerou uma onda de mobilização que vai inspirar uma nova geração de lideranças a ocupar a cena pública, o que, aliás, já vimos nas últimas eleições com o número inédito de candidatas negras, jovens e trans que foram eleitas país afora para as assembleias estaduais e o congresso federal. Um alívio para a dor e a incerteza que pesam como uma âncora que ameaça nos aprisionar à angústia do momento e à sensação amarga de que retrocedemos.

Olhando um pouco antes, as manifestações de junho de 2013, entre outras coisas, já tinham revelado o profundo déficit de representação, de liderança e  de legitimidade experimentado pelo sistema político, incluindo governos, partidos e instituições civis. Um mal-estar que cresceu com a incapacidade de o sistema político e da chamada sociedade civil organizada absorver as novas demandas.

A repressão crescente com a qual os governos passaram a receber protestos e as diferentes formas de manifestação de dissenso aumentaram cada vez mais a frustração e a revolta, especialmente da classe média e dos setores populares pressionados pela deterioração dos serviços e pela crise econômica – ao mesmo tempo em que as promessas simbolizadas pelos grandes eventos (Copa e Olimpíadas) não se realizaram. Uma parte significativa das esquerdas, dentro e fora do governo, não foi capaz de escutar e muito menos renovar visões de mundo. Encantada com o reflexo da própria imagem no poder, a esquerda naufragou junto com o velho sistema político oligárquico ao qual acreditava se contrapor.

(Foto: Brendan Smialowski/AFP)

Uma nova geração de lideranças e movimentos de direita ganhou espaço e visibilidade. Muitos se identificaram com a onda de movimentos “alt-right” (extrema direita alternativa) que florescem mundo afora, especialmente na Europa e nos EUA. Um populismo ultraconservador profundamente marcado pelo racismo, machismo e fundamentalismo religioso foi capaz de consolidar uma narrativa que capitalizou um medo difuso e ofereceu como resposta a formação de uma identidade comum contra um outro ameaçador. O resultado das eleições presidenciais de 2018 demonstrou de maneira inequívoca que essas forças vieram disputar um lugar de destaque na configuração política brasileira.

Não é uma onda passageira. Aponta para uma renovação do velho conservadorismo que se sustenta no patriarcalismo racista e violento para manter o espantoso padrão de exclusão social e desigualdades que nos caracteriza. Como vimos em outros momentos, o velho foi mais rápido em se renovar para não mudar. E o que era novo envelheceu.

Por isso acredito que, por um lado, precisamos focar naquilo que deu certo para escapar da depressão do presente; e penso muito na Mari, assim como em tantas outras lideranças jovens que inspiram e respiram. Mas também reconhecer que os formatos conhecidos e consagrados das instituições e movimentos sociais que nos trouxeram até aqui precisam rapidamente ser atualizados ou mesmo superados. A demora em reconhecer isso já nos custou muito caro. Mas a história não terminou, aliás, está apenas começando. Entre o espanto e o choque precisamos recuperar a inspiração para imaginar o mundo a partir da clave da esperança e não da frustração. Eis o maior desafio que temos pela frente. Que a democracia resista e se fortaleça em 2019.

Átila Roque é historiador, ex-diretor da Anistia Internacional no Brasil e atual diretor da Fundação Ford no Brasil.

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