3ª Turma

O abolicionismo penal é uma luta urgente

Aos que estão presos, cabe exercer o único dever de quem se encontra encarcerado: fugir!

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Hoje, só há uma única coisa a ser dita sobre a prisão por quem está fora dela: ela é intolerável. Ao passo que aos que estão presos, cabe exercer o único dever de quem se encontra encarcerado: fugir!

Sei que dizer isso pode soar como exagero, irresponsabilidade ou mesmo descolamento da realidade. Mas descolamento da realidade é imaginar que o sistema de justiça criminal é capaz de constituir uma sociabilidade saudável; irresponsabilidade é continuar sacrificando a juventude do país (na maioria, negra e periférica) nas mãos da polícia e dentro de prisões; exagero é assistir, passivamente, nossas classes populares sendo tragadas pelo histórico fluxo do regime dos ilegalismos que as colonizaram no circuito da legalidade e da ilegalidade burguesas.

Quando falo de abolicionismo penal é comum me colocarem duas objeções: 1. O que você faria se estuprassem sua mãe (ou irmã, ou namorada etc., sempre uma figura feminina a ser protegida)? 2. O que você propõe no lugar?

A primeira questão, tomo a liberdade de não responder, pois tal pergunta já revela a estupidez do interlocutor. A segunda, posso responder de dois modos: 1. Nada. Pois qualquer coisa ou nenhuma coisa é melhor do que o sistema de justiça criminal; 2. Se o interlocutor(a) está realmente interessado em ações efetivas, digo que tenho três proposta simples e diretas a serem aplicadas hoje, ancoradas em mais de 10 anos de pesquisas que realizo nessa área e outras tantas que me precederam: 1. Abolir a medida socioeducativa de internação (esse eufemismo para pena de privação de liberdade) para jovens no Brasil; 2. Liberar todas as substâncias tornadas ilícitas ao longo do século XX; 3. Estancar a linguagem punitiva.

Neste último ponto a universidade tem muito a contribuir, pois como dizia Louk Hulsman, o abolicionismo penal é simultaneamente um movimento social e acadêmico. Por isso, cabe justamente às pesquisas na universidade inventar uma linguagem não-punitiva, pois, socialmente, todos já experimentamos formas não-punitivas de resolução para situações problemáticas, ou ao menos, sem ligar para o 190. 

Essas três propostas se orientam pelo que, pra mim, deve ser o objetivo urgente do abolicionismo penal: parar de encarcerar. Pois, se o poder é logístico, é preciso estancar o fluxo prisional que alimenta o regime dos ilegalismos e fomenta o que se chama de “facções criminosas”. Este regime torna a sociedade refém da legalidade e ilegalidade burguesas que historicamente constituíram o sistema de justiça criminal e colonizaram as classes populares. É nesse sentido que todo preso é um preso político.

Como mostrou Michel Foucault, em Vigiar e Punir, a prisão é usada como solução há mais de 200 anos para os problemas que ela mesma cria.

Esse ciclo que se retroalimenta das suas próprias reformas só será interrompido quando abandonarmos a própria ideia de reforma ou melhoria do sistema de justiça criminal. É preciso fazer caírem os muros, é preciso a abolição. No caso do Brasil, uma segunda abolição, já que a primeira não é exatamente uma abolição de fato, apenas de direito.

Quem se dedica a estudar o tema, seja na Sociologia, no Direito, na Filosofia, na Ciência Política, nas Relações Internacionais, na Antropologia etc., sabe muito bem que a prisão não é apenas um prédio e que ela mudou muito nos últimos 50 anos. 

Para além da prisão-prédio, essa fantástica fábrica de moer corpos e espremer subjetividades, a prisão é um princípio moral, uma política, uma economia, um condessado da racionalidade política que funda a forma de organização das sociedades modernas. Dentre outros efeitos, quando uma pessoa é presa ativa-se todo um circuito que carrega com ela a família, um ramo da economia legal e ilegal, círculo de amizades e vizinhos, pesquisadores da universidade, operadores do Direito, agentes de segurança, empresas, think tanks, instituições religiosas, ONGs, Institutos etc e etc. Se como diz a canção, cada favelado é um universo em crise, cada pessoa encarcerada ativa uma constelação de relações, práticas, saberes e viventes na qual a pessoa aprisionada é quem menos importa, a não ser com disparador de tudo isso.

Mas isso tudo deixou de ser apenas um modelo produtor da individualidade moderna, replicado na escola, no hospital, na fábrica, para se tornar uma modulação porosa que, por vezes, dá a impressão de que, na medida em que a sociedade foi incapaz de abolir a prisão, ela (a sociedade) foi tragada pelo sistema prisional. Isso faz com que hoje vivamos em campos de concentração a céu aberto, monitorados e securitizados, 24 horta por dia, 7 dias por semana. Isso sejam nos trevos e cancelas, becos e vielas, guetos e favelas; sejam nos condomínios de luxo ou nos condomínios menos luxuosos da amedrontada e covarde classe média. E a relação da universidade com a prisão teve papel decisivo nesse processo.

 

Até os anos 1970, as prisões eram verdadeiras incógnitas, não se sabia ao certo o que se passava nelas, cumpriam seu papel de imagem do medo para os cidadãos de bem e os honestos trabalhadores que temiam serem enviados para lá. Mas foi justamente nessa época que emerge um pujante movimento contra as prisões em todo o planeta e, com ele, próprio abolicionismo penal. Para ficar em três exemplos bem genéricos: os grupos contra a tortura nas prisões de países latino americanos em contexto de ditadura civil-militar; o G.I.P. (Grupo de Informação sobre as Prisões) na França, no qual Michel Foucault teve um importante papel; a politização das prisões pelo movimento negro nos EUA (Attica, NY, 9/9/1971), entre outros.

Não é uma coincidência que, precisamente a partir dessa época, vão aparecer os trabalhos de Louk Hulsman, Jacqueline Bernat de Celis, Lorenzo Kom’boa Ervin, Nils Christie, Angela Davis, Edson Passetti, Salete Oliveira, Cecília Coimbra, Vera Malaguti entre outros, defendendo o fim das prisões e do sistema de justiça criminal Com sempre lembra Nilo Batista, ao retomar os debates no campo do Direito Penal dessa época, tem-se a impressão de que todos acreditavam que a prisão seria abolida amanhã. Hoje, o meme é “fulano preso amanhã”. Como passamos dessa eminente abolição para um verdadeiro culto à prisão como panaceia social (à direita e à esquerda)?

Um dos efeitos dessa mobilização que nos precede é que hoje a prisão não é mais uma incógnita. Isso por três motivos. 

Primeiro, porque, como reação a esses movimentos, a prisão se generalizou e se expandiu (vejam os dados dos anos 1990 pra cá em todo planeta) de tal maneira que todo cidadão tem contato, em primeiro ou segundo grau, com alguém que viveu a experiência prisional. 

Segundo, porque, ao se romper o silêncio sobre o que se passa no interior das prisões, mas com isso não aboli-la, criou-se um imenso mercado do entretenimento em torno da prisão e do tribunal. São milhares de livros, filmes, séries, quadrinhos, documentários etc e etc sobre a vida de prisioneiros e processos em tribunais, todos com uma retórica que mescla, de uma forma “emocionada”, a denúncia, o sofrimento e histórias de resiliência.

Essas peças do mercado de entretenimento apenas mostram o quanto a prisão é “desumana”, o que é contrassenso histórico, pois ela é uma invenção do humanismo.

Terceiro, porque a partir dos anos 1980/90, criou-se um tipo de pesquisa acadêmica, fundada na crença nos direitos humanos e na democracia, que ao fazer à crítica à prisão e às políticas de segurança pública sem colocar a urgência de sua abolição, acabou por renovar o discurso de reforma das prisões e expandir os seus tentáculos para além da prisão-prédio. Para citar dois exemplos bem localizados e de pontos de partida diferentes, foi o que constatei em meu mestrado “Política e polícia: cuidados, controles e penalizações de jovens”, defendido em 2009 e publicado em 2013, pela editora Lamparina; é o que se nota ao ler a tese de doutorado de Adalto Marques, “Humanizar e expandir: uma genealogia da segurança pública em São Paulo”, defendida em 2017, que ao expor o tríptico segurança pública–democracia–direitos humanos, mostra o colaboracionismo da sociologia da violência na expansão dos controles punitivos hoje.

Por isso disse lá no começo que hoje, mais do que nunca, é preciso ter como ponto inegociável a abolição do sistema de justiça criminal. Pois, como nos lembra Angela Davis, “no século XIX, ativistas abolicionistas insistiam que, enquanto a escravidão continuasse, o futuro da democracia seria realmente sombrio [e, pelo que vemos, eles tinham razão]. No século XXI, ativistas antiprisionais insistem que um dos requisitos fundamentais para a revitalização da democracia é a abolição mais do que urgente do sistema prisional”.

Nesse sentido, é salutar retomar a experiência dos anarquistas na segunda metade do século XIX, quando “eles tomando como ponto de ataque o aparelho penal, colocaram o problema político da delinquência; quando pensaram reconhecer nela a forma mais combativa de recusa da lei; quando tentaram, não tanto heroicizar a revolta dos delinquentes quanto desligar a delinquência em relação à legalidade e a ilegalidade burguesa que a haviam colonizado; quando quiseram restabelecer ou constituir a unidade política das ilegalidades populares” .

Alguém poderia objetar que a conjuntura, em todo planeta não é favorável para se falar abertamente em fim do sistema de justiça criminal, com o que eu concordo. No entanto, a luta contra as prisões e as penas não é um campeonato de pontos corridos no qual uma sólida defesa e um bom contra-ataque pode nos garantir o título ao final dos dois turnos ganhando jogos de magros um a zero; a luta contra as prisões e as penas é um campeonato de mata-mata e estamos em Altamira, onde as cabeças rolam como as pedras.

É a partir dessas referências que inicio minha jornada na CartaCapital. Arredio aos constrangimentos de conjuntura e certo de que a abolição penal é possível, necessária e urgente!

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