Justiça

Militares na Segurança Pública: uma armadilha para as Forças Armadas

Medida é uma grande ilusão para as Forças Armadas: enfraquece a defesa nacional e deteriora a segurança aos cidadãos

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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Na segunda-feira 15/03/2021, a Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende (RJ), começou um exercício militar em segurança pública nas cidades vizinhas de Porto Real e Quatis. Serão realizadas operações de patrulhamento de ruas, formação de bloqueios para revista de veículos e pedestres, além da simulação de prisões e de confrontos, utilizando tiros de festim. Prevista para terminar no dia 27/03, o objetivo da operação é “preparar os futuros oficiais do Exército para operações em que as Forças Armadas são convocadas em questões de segurança pública ou para auxiliar o trabalho da polícia em alguma situação”.

Por que isso é preocupante?

As Forças Armadas brasileiras receberam seu mandato no Capítulo II da Constituição de 1988, onde se lê no Art. 142 que elas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Essa definição é ambígua, pois mescla a função por excelência de quaisquer forças armadas – a defesa da pátria contra ameaças externas – e a manutenção da ordem interna – função das polícias.

Essa confusão tem uma procedência imediata nas doutrinas de segurança nacional adotadas em toda América Latina durante a Guerra Fria. Naquela época, os EUA determinaram um modelo de segurança hemisférica no qual eles cuidariam da defesa do continente contra ameaças externas (leia-se URSS), enquanto caberia aos países da região combater o “inimigo interno comunista”.

A partir dos anos 1990, os “comunistas” foram substituídos pelos “narcotraficantes” e “narcoterroristas”. O financiamento para a “guerra às drogas” continuou fluindo dos EUA para a América Latina transformando forças armadas em tropas antinarcóticos. No Brasil, esse processo tem sido distinto. O dispositivo constitucional da “garantia da lei e ordem” (GLO) foi regulado aos poucos, tomando forma nos governos de FHC e Lula. Desde então, a presença dos militares em segurança pública tem aumentado.

Essa “policialização” das Forças Armadas representa um flagrante perigo para a democracia e para a segurança cidadã, pois permite que militares brasileiros tratem seus concidadãos como “inimigos”.

Além disso, preparam uma ardilosa armadilha para as Forças Armadas. Um dos riscos é o da perda de capacidade material e técnica para atuar como verdadeiras forças armadas. Ainda que seja comum ouvirmos o argumento de que o Brasil não tem inimigos externos, nossa imensa riqueza natural e potencial econômico podem suscitar interesse ou “cobiça” de outros países. Além disso, a experiência de outras forças armadas latino-americanas já “policializadas” registra um histórico de perda de legitimidade e de desgaste institucional.

Tomemos o exemplo do México. Desde que a “guerra contra os cartéis” foi declarada, em 2007, estima-se que tenham sido assassinadas 275.000 pessoas, em conflitos diretamente vinculados à “guerra”. Além dos mortos, calcula-se em 30.000 o número de desaparecidos. No mesmo período, a Justiça mexicana recebeu mais de 125.000 denúncias contra militares por violações aos direitos humanos. O país passou a receber pressões da comunidade internacional e de organismos como o Conselho de Direitos Humanos da ONU. Em 2014, por conta dessa pressão, o Código Penal Militar foi alterado permitindo que militares fossem julgados pela justiça comum.

Em novembro de 2018, a Suprema Corte mexicana considerou a Lei de Segurança Nacional inconstitucional por tornar corriqueiro o emprego das forças armadas em segurança pública. Conforme dados oficiais do Instituto Nacional de Estadística y Geografía, a taxa de homicídios no país – que, em 2006, foi de 10 mortos por 100.000 habitantes – cresceu para 29 mortos por 100.000 em 2019. Ainda assim, dados da ONU indicam que em 2020 havia mais cartéis no México do que em 2006 e que a produção e trânsito de drogas ilegais não para de crescer.

Em outubro de 2020, o General Salvador Cinfuegos foi preso no aeroporto internacional de Los Angeles sob a acusação de envolvimento com o crime organizado. Cinfuegos foi o titular da Secretaria de Defensa Nacional – equivalente a Ministro da Defesa – entre 2012 e 2018. O general foi devolvido ao México onde a Procuradoria Geral decidiu arquivar o processo alegando falta de provas. Essa foi, no entanto, a primeira vez que um secretario de defesa mexicano foi preso.

O caso mexicano serve de alerta. Naquele país, a ineficiência dos governos estaduais e do governo federal em combater o narcotráfico levou à convocação das forças armadas para enfrentar uma guerra que não era a sua. No Brasil, o mesmo pode acontecer com as nossas Forças Armadas, com custos altos para a corporação, para o Estado e para a cidadania.

A Constituição determina que as PM e os bombeiros sejam forças auxiliares do Exército, podendo ser colocadas sob a sua autoridade em caso de guerra. Se a tendência de empregar nossos militares em funções de segurança pública se confirmar, acontecerá o contrário: o Exército se tornará força auxiliar das PM.

Assim, duas das políticas públicas mais importantes – Defesa e Segurança Pública – vão se unir em uma só. Com isso, não teremos nem defesa eficiente nem segurança pública bem sucedida. Cabe perguntar-nos a quem interessa tamanho enfraquecimento das Forças Armadas. Enquanto isso, a futura elite do Exército brinca de “bandido e mocinho” nas ruas do interior do Rio de Janeiro.

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