3ª Turma

Liberdade de imprensa entra na mira da Lava Jato

O lavajatismo tem úlceras quando se depara com meios de comunicação que não se alinham ao coral de bajuladores.

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Em setembro de 2016, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região julgou o ex-juiz Sérgio Moro por ter, dentre outras coisas, permitido grampos em escritório de advocacia, divulgado interceptações telefônicas envolvendo Dilma Rousseff, então presidente da República, e “importado” provas da Suíça sem a autorização necessária.

Não existia escapatória para Moro. Mesmo para o seu mais condescendente admirador, era difícil não reconhecer que havia desrespeitado a lei. A conversa entre Lula e Dilma tornada pública foi gravada após a ordem judicial que determinou o fim das escutas. Ou seja: passou por cima da própria decisão. Não suficiente, a Constituição Federal, em seu artigo 102, I, “b”, prevê que é o Supremo Tribunal Federal o órgão onde devem correr os processos nos quais quem ocupa a Presidência da República é parte. Assim, no momento em que identificou que Dilma integrava as conversas, Moro deveria ter mantido o sigilo e enviado o material para Brasília. Decidiu, contudo, interferir na disputa política e implodir a última tentativa de sobrevivência do PT no Planalto.

Era consenso que o então juiz havia batido de frente com a lei, como ele próprio reconheceu nas “respeitosas escusas” direcionadas ao falecido ministro Teori Zavascki após a puxada de orelha que levou em razão de ter liberado os áudios. Se havia uma janela para que o ex-juiz se safasse, não seria, definitivamente, a da legislação.

Fantasias republicanas vãs, no entanto, fizeram com que fugisse ao radar o fato do TRF-4 estar disposto a fazer acrobacias interpretativas para salvar a pele de Moro. Se a janela da lei está fechada, arromba-se a parede para criar saídas de emergência. A da moral, maniqueísta e infantil, é quase sempre a mais sedutora.

Foi a partir dela que o relator, o desembargador Rômulo Pizzolati, decidiu que o acusado não estava obrigado a seguir a lei, ou o “regramento genérico, destinado aos casos comuns”. Pizzolati foi seguido pela maioria de seus colegas e Moro ganhou muito mais que uma absolvição, mas um cheque em branco para permanecer impondo os seus juízos morais sobre a lei, privatizada e desmoralizada diante de seus caprichos.

Por isso não surpreende, como bem escreveu Elio Gaspari em sua coluna no O Globo, que ele e Dallagnol tenham se comportado como “imperadores ofendidos” diante das matérias do The Intercept Brasil. Reação coerente com o absolutismo com que Moro, achando-se acima de tudo e todos – Brasil e Deus entram nessa leva -, conduziu a operação Lava Jato tanto na condição de juiz como na de eminência parda, coach, tutor, babá ou o que quer que seja de Dallagnol e dos demais procuradores que compõem a força tarefa (destaque para a procuradora Laura Tessler, fritada por seu mentor por não saber fazer perguntas em audiência).

O procurador aposentado Carlos Fernando dos Santos Lima foi o protagonista da sexta parte das reportagens que vêm expondo os subterrâneos da Lava Jato. Em resposta, atacou em sua conta no Facebook o direito constitucional ao sigilo da fonte, previsto na Constituição em seu artigo 5º, XIV, quando necessário ao exercício profissional. Trata-se de uma garantia que vem na esteira da própria liberdade de imprensa trazida também em seu artigo 220.

Segundo Santos Lima, o The Intercept Brasil teria o dever de dar “uma explicação de como teve acesso a esse material de origem criminosa, e quais foram as medidas que tomou para ter certeza de sua veracidade, integridade e ausência de manipulação”. Seu esperneio deixa ainda mais claro que ele e seus colegas jamais tiveram a preocupação de sequer disfarçar que a Lava Jato é toda alicerçada no regime de exceção, adubado pelos códigos morais dos ex-titular da 13ª Vara Federal de Curitiba e do clubinho de procuradores de quem é guru.

O resultado desse excesso de confiança vem sendo uma sequência de práticas autoritárias impossíveis de se sustentar sob qualquer sombra do que se convencionou a chamar de Estado Democrático de Direito.

Uma defesa honesta da Lava Jato não pode jamais ser feita no campo das leis e do direito, mas tão somente no areal da moral utilitarista, segundo a qual seus agentes, ungidos do messiânico dever de varrer a corrupção do país, podem tudo e um pouco mais.

Foi meio à atmosfera de criminalização da política criada pela operação que o direito à presunção de inocência, a mais emblemática das garantias iluministas, foi sepultado. No mesmo caixão, acomodou-se de um lado o devido processo legal e do outro o dever de imparcialidade do juiz. Moro, seguido por Barroso e Fux, pedia vivas a uma plateia que, estimulada por uma imprensa dócil, o elevou à condição herói nacional. A opinião pública, afinal, é imprescindível para o êxito de empreitadas do tipo, conforme ele próprio escreveu em 2004 quando tratou da operação Mãos Limpas, responsável por devassar a política institucional na Itália no início dos anos 90.

Jair Bolsonaro e Sérgio Moro durante solenidade de assinatura da MP para confisco de bens de traficantes

Dois pontos merecem destaque: diferentemente da Lava Jato, a Mãos Limpas não serviu para instrumentalizar um golpe de Estado, como bem observou Eugenio Raúl Zaffaroni, ex-juiz da Suprema Corte da Argentina; o segundo ponto diz respeito ao fato do namorico dos lavajatistas com a imprensa durar até que se neguem a lustrar seus sapatos. Se há meios que resistem ao papel de puxadinho da assessoria do Ministério Público Federal, a conclusão do algoritmo lavatista é a de que, talvez, tenha chegado o momento de relativizar a liberdade de imprensa para colocá-los nos eixos. Mais ou menos como foi feito com a presunção de inocência.

Não há dúvidas de que o bolsonarismo tem em seu DNA um ódio patológico por todo tipo de liberdades individuais (desde que não façam parte do catálogo mercantil, claro). Dentre estas liberdades, a de imprensa ganha destaque, como já tivemos a oportunidade de demonstrar. Se o lavajatismo e o bolsonarismo são cabeças que dividem o mesmo corpo, a tônica autoritária que move a primeira é a mesma que anima a segunda. Moro não aceitaria entrar nesse barco se não concordasse ao menos em parte com os valores obscurantistas de Bolsonaro. “Sensato” e “moderado” foram as qualidades que o ex-juiz imputou ao seu chefe, características inusitadas até para o mais salivante bolsominion.

O histórico de desrespeito a liberdades e garantias constitucionais que marca o currículo dos lavajatistas não nos dá o direito de ficarmos surpresos caso resolvam voltar suas forças contra a liberdade de imprensa. Se não se sensibilizaram em respeitar a presunção de inocência, por qual razão um punhado de jornalistas que estão tirando seus sonos os faria despertar para um tempo de lâmpadas led e não de lampiões abastecidos com gordura animal?

Achar que existe uma reserva constitucional de respeito à democracia é pura ingenuidade. Se o bolsonarismo odeia a imprensa, o lavajatismo tem úlceras quando se depara com meios de comunicação que, a exemplo do The Intercept Brasil, não se alinham ao coral de bajuladores que contribuíram para que os espelhos de Moro e Dallagnol refletissem imagens de semideuses. O ex-juiz chegou a mandar a Polícia Federal bater na casa do blogueiro Eduardo Guimarães para descobrir se algum agente público havia lhe passado a informação de que Lula seria alvo de uma das fases da Lava Jato. O que o impede de agir assim novamente agora, que tem a Polícia Federal nas mãos?

A resposta pode estar na implosão da imagem do ex-juiz. Naquela época, o todo-poderoso Moro vivia num clima onde existia uma espécie de autorização moral para que agisse da forma que bem entendesse. As leis podiam ser tratadas como a plebe ignara e piolhenta que, insolente, ousa se colocar na frente dos poderes divinos de quem seria agraciado com o posto de Ministro da Justiça por aquele que se autoproclamou o maior beneficiário de suas ações.

O Moro de hoje, felizmente, não é o de ontem: acuado, constrangido, com a popularidade naufragando e perdendo sucessivamente o suporte de apoiadores tradicionais como a revista Veja, que acaba de publicar em sua capa que o ex-magistrado estaria entrando em seu outono.

O empoderamento de Moro e Dallagnol afundou a própria democracia liberal. É certo que o respeito à Constituição nunca foi uma preocupação para o bolsonarismo, uma espécie de doença infantil do lavajatismo. Ainda que as constituições liberais se resumam à tentativa histórica de prevenção contra surtos absolutistas, a Lava Jato fez com que mesmo o constrangimento que poderia existir nas investidas contra as instituições democráticas se afundasse no pântano da ignorância e do moralismo difuso dos tiozões de churrasco. Está correto Gilmar Mendes quando fala que o problema desse pessoal é com a própria civilização em si.

Em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Marx descreve como, após a Revolução de 1848, os líderes mais expressivos da classe operária francesa, um a um, foram tirados de circulação pelos tribunais. A imprensa não-alinhada com as forças dominantes também entrou na reta. Greenwald sobreviveu aos Estados Unidos no caso Snowden. É provável que sobreviva ao Brasil de Moro e de Bolsonaro – às custas, no entanto, de mais alguns pilares do tímido edifício constitucional que conseguimos levantar de 1988 para cá.

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